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A nova guerra fria

Veículo: Revista Época
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A história mostra que os Estados Unidos se valeram muitas vezes da sua condição de superpotência para ditar o comportamento de outros países. Desde a política de intervenção do Big Stick (O Grande Porrete) de Theodore Roosevelt, no começo do século XX, até a invasão do Iraque, 100 anos depois, os americanos eram os diretores da escola mundial, distribuindo tanto conselhos como advertências pela classe. Agora, um de seus melhores alunos já dá palpites na vida dos mestres. A China não se considera mais um mero receptor de discursos de Washington sobre economia - ou democracia. Logo após o rebaixamento da nota dos títulos do Tesouro dos Estados Unidos pela Standard&Poor’s, no último dia 5, os chineses cobraram mudanças na conduta americana. “A China, o maior credor da única superpotência do mundo, tem todo o direito de exigir que os Estados Unidos resolvam seus problemas estruturais da dívida e garantam a segurança dos ativos chineses em dólares”, afirmou uma nota da agência oficial do país, Xinhua. Horas depois, a Casa Branca se manifestou. Sem mencionar os chineses, o porta-voz Jay Carney admitiu que os EUA “precisam melhorar” na tarefa de enfrentar os problemas de sua economia. Na Guerra Fria que se configura neste século XXI, a voz de Pequim está mais grossa do que nunca.

A bronca chinesa foi um marco na relação de interdependência crescente forjada entre China e Estados Unidos nos últimos 30 anos. O regime comunista achou por bem até ser irônico: “Os dias em que Tio Sam podia tomar empréstimos ilimitados pelo mundo parecem estar contados”. Dez dias depois, o tema da dívida americana dominou a visita à China do vice-presidente dos EUA, Joe Biden. Na última quinta-feira, ele se encontrou com o vice-presidente chinês, Xi Jinping, provável próximo líder do Partido Comunista - e, consequentemente, presidente da China - a partir de 2013. Além de tranquilizar seu maior credor, Biden condicionou a “estabilidade do mundo” à cooperação entre as duas potências.

A fala de Biden mostra que a querela entre China e Estados Unidos não é secundária, nem capricho dos chineses. É uma prova do novo desenho de forças no cenário global, além de uma relação delicada. Como nas quatro décadas de conflito entre Estados Unidos e União Soviética, o embate sino-americano precisa ser bem administrado. Um confronto aberto pode ter consequências trágicas não apenas para as duas grandes nações, como para toda a comunidade internacional. Tal cuidado de Washington na interação com um adversário a sua altura é algo inédito desde o desmoronamento do império soviético. “Em 20 anos, os Estados Unidos nunca foram ameaçados em sua hegemonia, nem mesmo quando Japão e Alemanha despontavam”, afirma Elizabeth Economy, diretora do Centro de Estudos Asiáticos do Council on Foreign Relations (CFR). “A situação mudou com o grande salto da China.”

Poucos previam o alcance desse salto quando ele se desenhou, em 1976, com a chegada de Deng Xiaoping à liderança do país, após a morte de Mao Tsé-tung. Deng iniciou as reformas econômicas sem mudar o regime político: liberou o direito à propriedade, estimulou o empreendedorismo e incentivou o investimento estrangeiro. As três décadas com crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) acima de 9% ao ano são resultado de suas reformas. Com parte da missão cumprida, a China foi agraciada com a entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC), em dezembro de 2001. Depois de 15 anos de negociações, os 142 países membros da OMC saudaram a entrada da China como uma nova fase do capitalismo mundial. O diretor-geral da entidade na ocasião, Mike Moore, afirmou que uma “porta histórica havia sido aberta”. Os americanos acreditavam que a abertura chinesa representava um mar de oportunidades no “último grande mercado do mundo”.

REPROVAÇÃO - Na Bolsa de Xangai, um chinês acompanha índices em queda na semana passada. A China cobrou dos Estados Unidos mais controle sobre seus gastos

O ingresso na OMC fez mais bem à própria China do que aos Estados Unidos. Em 2007, no início de sua campanha para chegar à Casa Branca, o hoje presidente Barack Obama afirmou: “A China não é nem nossa inimiga nem nossa amiga. São nossos concorrentes”. Nessa disputa, a potência oriental ainda é a segunda economia do mundo, mas superou os americanos como maior força industrial no ano passado, quando os produtos chineses atenderam a 19,8% de toda a demanda mundial. O valor da produção industrial chinesa alcançou US$ 1,99 trilhão no ano passado, em comparação a um valor de produção de US$ 1,95 trilhão dos americanos. O país é hoje o maior exportador (ultrapassou a Alemanha) e o segundo que mais importa (atrás dos Estados Unidos) no planeta. Tem o maior superávit comercial e de conta-corrente do mundo e detém US$ 3,3 trilhões em reservas em moeda estrangeira (leia o quadro abaixo), o equivalente a um terço do que toda a comunidade internacional guarda em finanças.

 


De uma forma ou de outra, o mundo gira hoje em torno das duas grandes potências. Mas a nova Guerra Fria não é uma simples repetição do antigo conflito entre Washington e Moscou, em que havia uma disputa para cada palmo das possíveis áreas de influência. “A China não tem uma visão global, não quer pregar sua palavra para o mundo, nem tem a pretensão de substituir os Estados Unidos como hegemonia global”, afirma John Micklethwait, editor da revista britânica The Economist. “A bronca chinesa parece mais com a de acionistas que tiveram maus resultados e jogam a culpa no gerente.”

A Guerra Fria do século XXI parece mais um grande torneio, em que os adversários também são parceiros em vários momentos da competição. Os chineses se tornaram o maior credor estrangeiro dos Estados Unidos, com US$ 1,2 trilhão em títulos da dívida do Tesouro americano. O governo chinês forçou essa sociedade com a ostensiva política de crescimento baseada em uma moeda desvalorizada para sustentar suas exportações. Usa seus iuanes para comprar dólares de exportadores e com esses dólares adquire títulos do Tesouro americano - o único mercado no mundo com tamanho e liquidez suficientes para sustentar as compras na escala chinesa. Em um momento de crise, os chineses poderiam mudar sua estratégia e vender os títulos (os famosos Treasuries) ou parar de comprá-los, alternativas potencialmente desastrosas para ambos. “A China seria profundamente afetada por uma crise americana, porque eles são nosso maior mercado de exportações”, afirma Wang Jisi, professor de estudos internacionais da Universidade de Pequim. A China é o maior parceiro comercial americano, em uma relação que saltou de US$ 2 bilhões em 1979 para US$ 457 bilhões em 2010. “Há uma relação simbiótica, e é necessário que ambos se esforcem para manter o equilíbrio”, diz Wang.

Nesse jogo, todo e qualquer movimento de Pequim - o lado menos transparente e mais enigmático da disputa - é observado de perto e analisado com cuidado. Para os críticos da nação comunista, o puxão de orelha público dado após os Estados Unidos perderem sua nota AAA foi uma manobra diversionista. “O objetivo era desviar a atenção das críticas internas sobre a política econômica”, afirmou em um artigo Shen Dingli, economista e diretor do Centro de Estudos Americanos da Universidade de Fudan, em Xangai. “O governo precisa incrementar o consumo interno para permitir que o iuane flutue livremente. Só assim será possível reequilibrar a balança comercial sem depender dos títulos americanos.”



NO MESMO NÍVEL - À esquerda, o vice americano, Joe Biden, encontra o vice chinês, Xi Jinping, em Pequim, na última quinta-feira. À direita, os presidentes Barack Obama e Hu Jintao se cumprimentam na ida do presidente chinês a Washington, em janeiro. Nas últimas visitas, a China foi tratada de igual para igual pelo governo dos Estados Unidos

A China pode não acreditar que sua ascensão como potência esteja atrelada a um declínio dos EUA nem ter a pretensão momentânea de ser reconhecida como superpotência. Mas Pequim não tolera ingerência em assuntos internos, tampouco em suas áreas de influência. A venda de armamentos americanos para Taiwan é um tema capaz de azedar qualquer conversa entre os dois países. A “província rebelde”, como diz Pequim, é inimiga desde que os nacionalistas alijados do poder por Mao se exilaram na ilha, em 1949. Taiwan tem governo próprio, mas a China a considera parte de seu território. Desde o ano passado, Taiwan tenta comprar de Washington 66 caças F-16, no valor de US$ 4,8 bilhões, mas a China ameaça endurecer as relações com os americanos caso o negócio seja realizado. A decisão só será tomada em outubro.


“A China seria afetada profundamente por uma crise americana”, diz o professor chinês Wang Jisi


O histórico diplomático cauteloso entre China e Estados Unidos já dura muitos anos. Os países cortaram relações quando os comunistas chegaram ao poder. A reaproximação ocorreu 22 anos depois, graças a um episódio lendário na diplomacia mundial. Em abril de 1971, o mesa-tenista americano Glenn Cowan se perdeu dos colegas da equipe dos Estados Unidos no Mundial do Japão e pegou carona no ônibus da delegação chinesa. Quatro dias depois, o governo chinês convidou nove jogadores americanos de tênis de mesa para ir a Pequim duelar com os chineses. Foi a primeira visita oficial de atletas americanos à China desde 1949 e inaugurou a chamada “diplomacia do pingue-pongue”. Em julho do mesmo ano, Henry Kissinger, então conselheiro de Segurança Nacional do presidente Richard Nixon, viajou em missão secreta para o país. Ele e o ministro chinês Chu En-Lai pavimentaram o caminho para a histórica visita de Nixon a Mao Tsé-tung, em 1972.

Hoje, aos 88 anos, Kissinger dá a dica sobre o melhor modo de lidar com os chineses. Em seu livro On China (Sobre a China), lançado em maio nos EUA e previsto para chegar ao Brasil em outubro, ele diz que não se devem colocar os chineses contra a parede. “Os estadistas chineses raramente jogam a solução de um conflito numa batalha de tudo ou nada. Preferem realizar manobras mais lentas e elaboradas”, escreve. Taiwan é um ótimo exemplo: a relação com o país é tensa há 60 anos, mas com apenas três crises armadas.

O governo chinês faz questão de reafirmar publicamente seu compromisso com a paz. No ano passado, durante uma visita aos Estados Unidos, o presidente Hu Jintao disse a uma plateia de empresários que seu país não tem uma política militar expansionista nem quer “ameaçar ninguém”. A frase era um recado tranquilizador ao Pentágono, mas não mascara os gastos crescentes dos chineses na área militar. Potência atômica e membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, neste ano a China aumentou seu orçamento militar em 12,7%, para 601,1 bilhões de iuanes (US$ 93,9 bilhões). As médias de aumento desde 1999 têm sido acima de 10%, mas os chineses gostam de lembrar que seus gastos militares são muito inferiores aos de Washington (US$ 698 bilhões). Mesmo assim, países como Taiwan e Japão suspeitam das ambições do vizinho. As chances de a China sair em incursões militares mundo afora, porém, são pequenas. “O investimento militar cresce porque os atuais líderes políticos não têm relação com as Forças Armadas e precisam do apoio do Exército”, afirma Susan Shirk, especialista em China e autora do livro The fragile superpower (A superpotência frágil). Prova disso é que, em seis anos, os soldados e oficiais do Exército de Libertação do Povo, como é conhecido o Exército chinês, receberam três aumentos - o último deles de até 40%. “Tudo o que eles não querem é se enfiar em uma guerra por disputas territoriais. Eles estão preocupados com estabilidade e expansão do crescimento econômico”, diz Susan.


O MAPA DA CHINA - Um chinês ajuda operários sudaneses a ler um cartaz em mandarim em um campo petrolífero do Sudão. A África é a grande área de influência chinesa na atualidade

É exatamente o avanço das fronteiras comerciais que pode causar atritos entre Estados Unidos e China. “Enquanto os americanos gastavam tempo, diplomacia e dinheiro em três guerras (contra o terror, no Afeganistão e no Iraque), a China buscava investimentos e parceiros mundo afora”, diz Elizabeth Economy, do CFR. A África, um continente praticamente esquecido pelos americanos, tornou-se a fonte essencial de matéria-prima para os chineses. Em 2010, o comércio entre Estados Unidos e África somou US$ 113 bilhões. A parceria com os chineses chegou a US$ 150 bilhões, e a expectativa é alcançar US$ 300 bilhões em 2015. No começo da década, a China representava apenas 5% do total das relações comerciais africanas; hoje ultrapassa os 20%.

O Sudão é um exemplo da bem-sucedida política externa chinesa. O país é o sexto maior fornecedor de petróleo para Pequim, principal parceiro comercial dos sudaneses. Em junho, o líder sudanês, Omar al-Bashir, desembarcou em Pequim para assinar novos acordos. Os chineses ignoraram a ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI), que acusa Bashir de crimes de guerra no combate a rebeldes em Darfur, e vetam qualquer resolução no Conselho de Segurança da ONU contra o parceiro africano. No país, entram com muito dinheiro e exigem que as obras sejam realizadas por suas empresas e seus trabalhadores. Não há licitações ou as tradicionais preocupações com transparência - típicas de nações liberais e democráticas. Toda a negociação é feita de governo para governo - ou melhor, de ditadura para ditadura. Outra nação africana, Angola, maior fornecedor de petróleo da China, abriu-se para o dinheiro de Pequim ao final da guerra civil, em 2002. A China financiou a reconstrução de parte da infraestrutura do país em troca da aquisição de matérias-primas como óleo, cobre e zinco. A ex-colônia portuguesa segue feliz com a parceria.

Essa ânsia por mercados chega a atrapalhar ambições brasileiras mundo afora. Entre as economias emergentes, o Brasil é o terceiro maior parceiro da África, com 7,1% das relações comerciais, atrás de China (38,5%) e Índia (14,1%). O total de investimentos brasileiros em Angola hoje é de US$ 3 bilhões. Nos últimos anos, a China financiou projetos que chegam a US$ 10 bilhões. Deparar com as asas do dragão sobre seus interesses no exterior não significa, porém, que o Brasil torça para um tropeço chinês ou um agravamento da disputa com os americanos. “Somos cada vez mais dependentes da boa saúde financeira da China”, afirma o historiador brasileiro Eric Vanden Bussche, pesquisador das universidades de Taiwan e Stanford.

Dos US$ 15 bilhões em investimentos produtivos da China na América Latina em 2010, US$ 11 bilhões ficaram no Brasil. Os chineses já são os maiores parceiros comerciais do país, com US$ 30,8 bilhões exportados para o gigante asiático em 2010, uma alta de 46% em relação a 2009. Na guerra sino-americana, o bem-estar do Brasil - e do mundo todo - está em jogo. Todos têm muito a ganhar e a perder. O importante é que o conflito seja bem gerenciado, pelos dois lados. Ao contrário da Guerra Fria do século passado, é melhor que nesta não haja um vencedor.



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