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Algodão além da Pluma

Veículo: Dinheiro Rural

O agricultor Ciro de Carvalho, de 64 anos, acorda todos os dias antes do amanhecer. Ele mora em Irapuá, distrito de 1,8 mil habitantes, no município cearense de Nova Russas, a 414 quilômetros de Fortaleza. No final de junho, num roçado de 1 hectare e meio, Carvalho fazia as primeiras colheitas do algodão plantado em janeiro. No semiárido nordestino, um bioma de difícil doma por causa da falta d’água, sua roça até parece um oásis. Ali, o agricultor planta algodão orgânico em sistema agroecológico, dividindo espaço com milho, feijão, gergelim, abóbora e melancia. “Com o algodão orgânico, a renda aumentou muito”, diz. “Antes, eu tirava R$ 2 mil por ano, no máximo. Em 2018, faturei R$ 4 mil.” Na safra passada, ele colheu 300 quilos de pluma.

Na região de Nova Russas, há 180 produtores da fibra plantada em sistema agroecológico. No início do projeto, apenas 15 agricultores aderiram ao orgânico. O grupo cresceu à medida em que outros fazendeiros viam como a assistência técnica e a busca por mercado mudavam a realidade das propriedades. Pedro Jorge Bezerra Lima, diretor técnico e fundador do Esplar, coloca o início dos anos 2000 como um marco nessa corrida. À época, o francês François-Ghislain Morillion, um dos donos da Vert Shoes, chegou ao município de Tauá, a 201 quilômetros de Nova Russas.

Morillion buscava por uma fibra produzida com responsabilidade social e ambiental. “Ele saiu do sertão com duas toneladas de pluma, negociada pelo dobro do preço do algodão convencional”, conta Lima. “Desde então, a Vert é compradora constante na região.” Hoje, os produtores sabem, no momento do plantio, qual a demanda e o preço que será pago pela empresa. “Isso dá grande segurança e incentiva a produção dos pequenos agricultores”, diz.

BEM SOCIAL Um dos muitos fornecedores da companhia Vert na região é Vicente Carvalho Neto, 56 anos, irmão de Ciro Carvalho. No ano passado, Neto colheu 456 quilos de pluma, numa área de cerca de 1 hectare. “Antes, eu não tinha renda e só plantava para consumo próprio”, afirma o agricultor. “Hoje, além de possuir uma renda, ajudo a preservar o meio ambiente.” No hectare produtivo, Neto também planta, desde 2005, gergelim, feijão e milho. De acordo com as suas contas, por ter optado pela agroecologia, ele já deixou de desmatar pelo menos 15 hectares.

Com a organização da produção e maior remuneração, as comunidades passaram a ter outro olhar sobre a gestão do trabalho e as demandas sociais. Manter os filhos na escola, rejeitar o trabalho infantil e dar mais poder às mulheres passaram a ser motivo de orgulho nessas comunidades.

O agricultor Antonio Giovane Carvalho, 50 anos, por exemplo, tem uma área de 0,8 hectare em Irapuá, onde planta milho, feijão, abóbora e melancia, além do algodão. Para ele, autonomia e poder de decisão foram os maiores ganhos. “Antes, as condições de trabalho eram complicadas”, destaca Carvalho. “Agora, enquanto funcionar esse sistema de venda que temos, vou continuar produzindo algodão”, afirma.

No caso das mulheres, o trabalho de engajamento além da lavoura está rendendo frutos, literalmente. No ano passado, seis delas criaram o grupo Mulheres do Quintal Produtivo. Nesta safra, elas esperam colher 45 quilos da fibra, além de cultivar frutas e hortaliças, como mamão, acerola, seriguela, goiaba, cebola, pimentão, coentro e cebolinha. “Antigamente, era difícil ter mulheres produzindo”, declara Maria de Carvalho, 45. “Hoje, vamos além do trabalho.” Elas também discutem seus planos e anseios de futuro. Lucélia da Silva Lopes, 29, é a mais nova do grupo. Para ela, a cooperação influencia diretamente na produção. “No começo, a gente trocava mudas de plantas entre nós mesmas”, diz. “Passamos também a trocar experiência sobre pragas e manejo da plantação”.

SERTANEJO FORTE O trabalho no semiárido é, antes de tudo, de resistência. Em Nova Russas, a pluviosidade média anual é de 785 milímetros de chuvas. Quase um deserto se comparado ao Saara, na África, com 551 milímetros por ano. A efeito de comparação, em Lucas do Rio Verde (MT), uma das maiores cidades produtoras de soja do Brasil, a média de chuvas é de quase 1900 milímetros por ano. E Crateús ainda enfrenta outro problema: a água é inconstante e ainda pode vir na hora errada.
O Ceará vem sendo castigado pela ausência de chuvas expressivas desde 2012. Nesta safra, porém, a água veio. Mas além da conta e quando não devia: no momento da colheita. “Choveu tanto que alagou tudo”, diz Carvalho. “Na minha área, teve lugar com água na cintura.”A indústria têxtil sabe que essa resistência também representa oportunidades. Na safra 2016/2017, a produção nacional de algodão orgânico foi de 43 toneladas de pluma. A estimativa para a safra atual é de 1% da produção brasileira, entre 30 e 40 toneladas.

Hoje, o mercado global de orgânico cresce a uma taxa de 10% ao ano. São 220 mil produtores, de 18 países, que cultivam 473 mil hectares. O grande destaque é a Índia, dona de 50% desse mercado, segundo o OCMR. Além disso, 213,5 mil hectares estão em conversão para o orgânico. Para o Brasil, o orgão aponta 496 hectares e mais 155 em conversão. Os dados globais serão atualizados em outubro, quando acontece, no Canadá, a Conferência de Sustentabilidade Textile Exchange 2019. No ano passado, na Itália, participaram 800 produtores e empresários, de 43 países.

O movimento global do algodão baseado em pequenas propriedades, geralmente em áreas de produção muito pobre, tem atraído a indústria têxtil por dois motivos: ela passa a exercer um papel social e organiza uma cadeia por meio da agregação de valor. No caso da C&A, através de seu instituto, estão sendo assistidos 952 produtores. Nessa safra, eles devem colher 7 toneladas de algodão sustentável, o que contempla também a pluma orgânica. Além de 238 produtores cearenses, outros 714 foram engajados nas últimas safras, nos estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Chamado de Programa de Incentivo ao Algodão Sustentável, com um orçamento de R$ 3,6 milhões neste ano, o projeto da C&A atua, ainda, em Minas Gerais e deve ir para o Mato Grosso. “Para ganhar escala nesse tipo de produção, é preciso estar perto e influenciar os médios e grandes agricultores”, diz Luciana Pereira, gerente de Matérias Primas Sustentáveis do Instituto C&A. Até a década de 1980, o Ceará era um produtor importante da fibra, que sofreu com pragas. “A sacada é desenvolver o programa em regiões com um histórico na plantação de algodão.”

De origem holandesa, a C&A possui uma das maiores cadeias globais de lojas de vestuário, com 59 mil funcionários, em 21 países, e faturamento global estimado em R$ 32 bilhões. Uma das metas da companhia é vender produtos sustentáveis, entre eles a fibra orgânica, embora não pratique a compra casada com os produtores assistidos. Na Bahia, por exemplo, o instituto incentiva a certificação de algodão BCI (na tradução, Um Algodão Melhor). O BCI é um projeto global de sustentabilidade na cotonicultura, com 1,4 mil membros e mais de 2 milhões de produtores em 21 países.

Por isso, não é só no Brasil que a empresa atua. Em julho, Litul Baruah, especialista em Programas e Análises do Instituto C&A na Índia, esteve pela primeira vez no País. A ideia é replicar lá o que funciona aqui. Para o executivo, o maior desafio é fazer os pequenos cotonicultores entenderem a sua importância na indústria têxtil. “Os produtores não sabem o quão grande e fundamental eles são, justamente porque se tratam de pequenas propriedades”, destaca Baruah. Além de Brasil e Índia, o programa da C&A está presente na China, no Paquistão e na Tanzânia. É a onda do algodão sustentável ganhando força mundo afora.

Carvalho é um dos assistidos pelo Centro de Pesquisa e Assessoria Esplar, uma Organização Não Governamental (ONG). Entre os apoiadores do projeto, estão o Instituto C&A – que pertence à rede global de vestuário – e empresas como a Vert Shoes e a Justa Trama Fibra Ecológica, além de ONGs como a Articulação Nacional de Agroecologia e a We World. Em termos de impacto socioambiental, o projeto do Esplar muda a vida nas comunidades onde está inserido porque eleva a qualidade da agricultura familiar e gera mais lucros ao produtor. O Relatório do Mercado de Algodão Orgânico de 2018 (OCMR, na sigla em inglês), da Textile Exchange, entidade com sede no Texas (EUA) e que reúne iniciativas da indústria do setor de 25 países, mostra que o preço pago pelo quilo da fibra orgânica no Brasil tem variado entre US$ 1,80 e US$ 3. Na comparação com o algodão convencional, o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) indicava, em janeiro, o preço de US$ 1,80 o quilo. A produção mundial da fibra orgânica é de 117,5 mil toneladas.



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