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Mitos e verdades vêm a galope com a biografia do 'Cavalão' Bolsonaro

Veículo: Valor Econômico 

Seção: Política 

Com um saco plástico nas mãos, Jair Bolsonaro entra em uma sala no Congresso Nacional, passa por deputados e senadores e senta-se na primeira fileira. A embalagem está cheia de estrume de vaca, bem mole, e é colocada sobre a mesa. Os parlamentares discutem a criação da Unidade Real de Valor (URV) em uma comissão especial e rejeitam uma a uma as emendas apresentadas. Quando sua emenda é anunciada, Bolsonaro levanta, segura o pacote com fezes e ameaça jogá-lo em todo mundo se a proposta não for aprovada. Sem objeções, o deputado comemora a vitória e o aumento da remuneração conseguido para os militares. 

"Gol de placa e tiro na testa de quem adora acusá-lo, infantilmente, de nunca ter aprovado nenhuma proposta como deputado", diz Flávio Bolsonaro, na biografia que escreveu sobre seu pai, "Mito ou Verdade", lançada pela Editora Altadena. Por debaixo do paletó de político de Bolsonaro, "sempre existirá um capitão vibrador", escreve Flávio, ao citar a formação militar do pai e a disposição em "enfrentar o sistema". 

O episódio de 1994, narrado pelo filho, mostra o "tempero à Bolsonaro" para garantir a aprovação da emenda, mas não traz a informação de que o deputado foi o único a votar contra a URV na mesma comissão em que levou o estrume. Pré-candidato à Presidência, Bolsonaro militou contra o Plano Real, apesar de seu discurso liberal. Tampouco o livro cita que em sete mandatos, Bolsonaro aprovou só dois projetos. 

A biografia, diz Flávio, é para mostrar o lado sensível do "Cavalão" - apelido do pai entre militares. "Bolsonaro também chora", diz o filho do deputado federal eleito pelo PSC do Rio de Janeiro e segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto para a disputa presidencial. 

O livro mostra a versão do filho para acusações de racismo, homofobia, apologia ao estupro e machismo contra Bolsonaro, e para polêmicas como o plano de explodir bombas em prédios militares no Rio. 

Aos 23 anos, Bolsonaro não titubeou ao se jogar nas águas de uma lagoa, durante um exercício físico no Exército, para salvar "Negão Celso" de afogamento - sem precisar de respiração boca a boca, registra. "Uma evidente prova do 'racismo' de Bolsonaro já nos tempos de caserna", ironiza Flávio. Na descrição do ato, em uma página, o soldado Celso é chamado pelo nome uma vez e tratado como "Negão Celso" três vezes. 

Na Câmara, Bolsonaro tinha um bom convívio com o então deputado Clodovil Hernandez, homossexual. Tentou apresentar projeto em parceria com ele e fez "quase uma declaração de amor" ao colega no plenário. "Bolsonaro nunca teve qualquer problema com gays", diz. 

Em seu mandato, organizou protestos com esposas de militares em favor do reajuste salarial dos maridos e da pensão integral. "Como pode ser comprovado, Bolsonaro sempre lutou pelas mulheres!". Sobre a acusação de apologia ao estupro, a biografia diz que ele tem projeto para a castração química e punições severas para estupradores. "E ainda fazem crer que Bolsonaro faria apologia a essa repugnante prática". 

Ao falar sobre a família de seu pai, Flávio dá destaque aos homens. O pai de Bolsonaro, Percy Geraldo, fazia obturações, dentaduras e extraía dentes, apesar de não ter formação em odontologia. Geraldo foi preso pelo exercício ilegal da profissão, mas a detenção é descrita como perseguição política. Ao sair da prisão, o avô voltou a trabalhar como "dentista prático". A mãe de Bolsonaro, Olinda, é apenas citada. Não há referências às mulheres com que o pai se casou, nem à irmã mais nova, Laura. 

As acusações contra Bolsonaro na Justiça ganham uma versão diferente na biografia. O Tribunal de Justiça do Rio confirmou a condenação e multa de R$ 150 mil a Bolsonaro, por declarações racistas e homofóbicas no "CQC", da TV Bandeirantes. No programa, Bolsonaro disse que não aceitaria ser operado nem entraria em um avião pilotado por um "cotista" e afirmou que seus filhos não corriam o risco de se apaixonarem por uma negra nem de se assumirem gays porque deu boa educação a eles. O livro, porém, diz que a Justiça "foi lenta, mas veio" e que o deputado "sentiu-se livre para voltar a viver normalmente". Também não são citadas a decisão do Superior Tribunal de Justiça de manter a condenação e o pagamento de indenização à deputada Maria do Rosário (PT-RS), por ofensas, nem a condenação e multa de R$ 50 mil por declarações contra quilombolas e negros. 

Bolsonaro, segundo o livro, não é "Rambo-Naro" nem o terrorista que pretendia explodir bombas em prédios militares no Rio, para pressionar o governo por aumento salarial. Reportagem da revista "Veja", de 1987, dizia que ele tinha plano para explodir locais, registrado em croquis supostamente de sua autoria. Flávio diz que a matéria foi uma "fantasia" e conspiração. Havia uma articulação nas Forças Armadas para isolar militares que pudessem atrapalhar interesses políticos da corporação e, como Bolsonaro era conhecido por lutar pelo reajuste dos militares, tornou-se alvo da cúpula do Exército, junto com o general Newton Cruz. A repórter que assina a matéria, diz Flávio, tinha o mesmo sobrenome do comandante da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e foi demitida depois da publicação. 

Segundo a Polícia Federal, os croquis eram de Bolsonaro. Outras três perícias lançaram dúvidas ou negavam a autoria. O caso foi julgado pelo Superior Tribunal Militar e arquivado em 1988, mas o ministro do Exército estava insatisfeito. Bolsonaro poderia voltar a ser julgado. 

No ano anterior à denúncia da "Veja", Bolsonaro havia escolhido a revista para publicar o artigo "O salário está baixo", com críticas à remuneração dos militares. O então capitão foi preso por 15 dias, por dar entrevista sem autorização de seus superiores, mas o episódio o ajudou a ter projeção nacional - e eleitoral.

"Sufocado" pelo comando militar, Bolsonaro mirou na política e disputou uma vaga para vereador no Rio em 1988. O plano B era limpar o casco de navios e "tirar craca" para sustentar seus "hamsters", como amigos chamavam seus filhos. Pensou em filiar-se ao PMDB, mas "Deus agiu" e foi para o PDC. Na campanha, diz ter se beneficiado da pecha de terrorista e elegeu-se como representante da família militar. Como vereador, deu visibilidade a causas militares e defendia a esterilização de homens e mulheres, para depois o país instituir a pena de morte. 

Apesar da defesa da morte de criminosos, "Deus" é sempre citado como o responsável pelas escolhas de Bolsonaro. Antes de criticar sua remuneração à "Veja", consultou-se com um amigo espírita e ouviu que sua missão na Terra era a de lutar pelos militares. Ao eleger-se vereador, o "Homem lá de cima" deu força. 

Em 1990, dois anos depois de eleito vereador, foi para a Câmara e começou a ficar conhecido por defender que direitos humanos são o "esterco da vagabundagem" e só servem para "proteger bandidos". O massacre de 111 detentos no Carandiru foi "pouco". "A Polícia Militar tinha que ter matado mil". A "posição firme" ajudou a elevar em 70% os votos na reeleição, em 1994. 

As polêmicas foram acompanhadas por processos por quebra de decoro parlamentar. O primeiro foi em 1993, depois que Bolsonaro pediu o fechamento do Congresso e a volta da ditadura. A biografia diz que foi "uma força de expressão levada ao pé da letra". O segundo foi por defender o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1997. O livro cita as denúncias de pagamento para deputados votarem a favor da emenda de reeleição de FHC, e diz que "foi no contexto" dos escândalos de corrupção e da crise econômica que sugeriu o ato violento. Novamente, "a declaração foi levada ao pé da letra". "Prefiro ser cassado a ser castrado. Tenho ou não tenho imunidade para emitir opiniões?", disse Bolsonaro, à época.

A declaração do voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 não aparece de forma direta. Flávio diz que na disputa entre "Lula sindicalista e José Serra [PSDB], ex-integrante do grupo terrorista Ação Popular" havia uma enorme dúvida, mas que o petista foi eleito. 

No ano seguinte, em 2003, protagonizou uma nova polêmica, ao discutir com a deputada Maria do Rosário durante uma entrevista à Rede TV. Bolsonaro chamou a colega de "vagabunda", "sem moral", ameaçou dar bofetada e disse que não a estupraria porque ela não merecia. A biografia diz que ele foi chamado de estuprador pela deputada e, em um ato de reflexo, exaltou-se. Para Flávio, a petista "vitimizou-se". Um novo processo por quebra de decoro parlamentar foi aberto contra ele. 

No governo Lula, o deputado diz ter recebido a oferta da superintendência do aeroporto Santos Dumont para votar a favor da reforma da Previdência e integrar a gestão. "Mais uma tentativa frustrada de comprar o passe de Bolsonaro", diz.

Uma nova polêmica o ajudou a ter a maior votação de sua história, com 464,5 mil votos, ao disputar o sétimo mandato, em 2014. No fim de 2010, classificou como "kit gay" o material do Ministério da Educação, então comandado por Fernando Haddad (PT), para discutir sexualidade nas escolas. Apesar de protestos contra Bolsonaro, o deputado atraiu eleitores. Em 2013, vídeos com a "pegada de zoeira" começaram a ser publicados em redes sociais e criou-se o "Bolsomito". Em 2016, no impeachment da então presidente Dilma Rousseff, fez apologia ao torturador Carlos Brilhante Ustra e, com isso, passou a ser "admirado ainda mais pela coragem".

Como "vacina" à Operação Lava-Jato, Flávio diz que ele e seu pai rejeitaram doação da JBS e mostra um cheque nominal de Bolsonaro devolvendo o dinheiro recebido.

Flávio diz que seu pai faz "política do seu jeito" e que uma das preocupações nas campanhas é de "não criar falsas expectativas para ninguém". Com 62 anos, o presidenciável é descrito como representante dos que estão cansados com a ausência de Deus no coração, a insegurança, a roubalheira, o desemprego, a promiscuidade política e moral e a falta de amor à pátria. "Patriota" está no começo e no fim do livro e remete ao partido que Bolsonaro deve se filiar. A candidatura é tida como missão do "Homem lá de cima". "[Bolsonaro] nunca teve a intenção de representar algo tão grande e importante na vida de milhões de brasileiros: a esperança. Passou a encarar tudo como uma missão de Deus". 

 



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