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Temer caminha para 'sarneyzação' e deve falhar com reformas

Veículo: Valor Econômico 

Seção: Política 

O governo Michel Temer caminha para a "sarneyzação" e o presidente não deve conseguir aprovar propostas que foram bandeiras da gestão pemedebista, como a reforma da Previdência. Temer deve manter-se no cargo até o fim de 2018, mas estritamente voltado a resistir à pressão dos partidos aliados no Congresso e a denúncias de corrupção. Essa é a análise do cientista político José Álvaro Moisés, professor da USP. Mesmo conseguindo barrar a segunda denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República, Temer não terá tranquilidade para aprovar seus projetos.

O placar da votação será um indicador da fragilidade do governo e da instabilidade do chamado presidencialismo de coalizão, diz o cientista político. O governo reformista, propagandeado por Temer, foi substituído por uma administração impopular, cuja agenda está paralisada no Congresso. A limitação política da gestão, afirma Moisés, tem efeitos sobre a economia e políticas sociais. Além do desgaste do presidente, a votação da segunda denúncia contra Temer, ontem, mostra a deterioração do Parlamento, cuja missão é de fiscalizar, controlar e monitorar o Executivo, diz. O presidente e os ministros Moreira Franco (Secretaria-Geral) e Eliseu Padilha (Casa Civil) são acusados pela Procuradoria-Geral da República de integrarem uma organização criminosa que desviou mais de R$ 500 milhões dos cofres públicos. Temer é acusado ainda de obstrução da Justiça.

A seguir, os principais trechos da entrevista de Moisés ao Valor durante encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em Caxambu (MG). Valor: Que cenário o senhor vê depois da votação da segunda denúncia contra o presidente e desse novo desgaste para o governo? José Álvaro Moisés: Não é normal em um país democrático, seja presidencialista ou parlamentarista, que o governo seja submetido a denúncias frequentes e, ao mesmo tempo, não seja capaz de responder o mérito das denúncias. Esse quadro, do presidente denunciado ter apoio parlamentar para que não prossigam as investigações ao Supremo Tribunal Federal, é uma deterioração de uma dimensão extremamente importante do Parlamento brasileiro, que é sua missão de fiscalização, controle e monitoramento do Executivo. Não podemos construir uma governabilidade em torno da qual o principal dirigente do Estado está denunciado e progressivamente perdendo confiança. A capacidade que o governo tem para mobilizar a população é muito baixa. É evidente que quando se tem um presidente com uma popularidade muito baixa, em torno do qual existe uma enorme desconfiança, não há como esperar que seu projeto de restauração da Previdência seja apoiado pela sociedade. Valor: O governo se sustenta até 2018? De que forma? Moisés: O governo vai se manter, vai chegar até o final de 2018, mas não garante que vai ser capaz de manter a agenda de reformas que são indispensáveis para recompor a economia.

Essa agenda seria o único elemento em torno do qual Temer poderia recuperar sua credibilidade e popularidade. Significa que está de alguma maneira condenado. Em vez de a decisão sobre a segunda denúncia abrir um terreno de tranquilidade para o presidente eventualmente aprovar sua agenda de reformas, será um indicador de fragilidade do governo e um indicador de um aspecto muito importante da instabilidade do chamado presidencialismo de coalizão. O Centrão e as bases de apoio do presidente estão aproveitando essa fragilidade para obter benefícios para os partidos e lideranças políticas. Valor: O que mantém no cargo um presidente que tem uma popularidade do tamanho da margem de erro das pesquisas e deve sair da segunda votação mais fragilizado? A quem interessa mantê-lo? Moisés: Ele está apoiado na estrutura do presidencialismo de coalizão e, no entanto, essa estrutura é fragilizada, funciona mal. Implica a celebração de acordo com partidos que não têm grande representatividade para a sociedade, mas que têm alguns votos no Congresso. Temer construiu uma base para se manter.

Mas se manter para quê? Seria interessante para aprovar reformas que mesmo que não tenham apoio unânime da população pudessem ter algum significado da retomada da economia. Mas mesmo isso está ameaçado. O presidencialismo de coalizão supõe que o presidente consiga apoio no Congresso e, ao mesmo tempo, dá um poder para as bancadas extraordinariamente grandes para cobrar coisas que são completamente antirrepublicanas, a exemplo das demandas que a bancada ruralista fez ao presidente, tanto no que diz respeito à diminuição das multas dos Refis quanto no decreto em que quase restitui uma dimensão do trabalho escravo no Brasil. Valor: Temer de alguma forma se assemelha a Sarney, com fragilidade enfrentada no Congresso? Moisés: Há uma "sarneyzação" no sentido de que, no final do governo Sarney, depois do Plano Cruzado, o presidente já não conseguia aprovar propostas e não tinha grande apelo para manter a agenda no Congresso. Temer caminha nessa direção. Por causa do comprometimento do PMDB que ele dirigiu durante muitos anos, do comprometimento com práticas de corrupção, ele restringiu, foi diminuindo a perspectiva de seu governo.

Se no início era um governo reformista, com alguma coragem para enfrentar reformas que outros presidentes não conseguiram fazer, ele foi de tal modo diminuindo sua dimensão e sua perspectiva que hoje é identificado por uma boa parte da opinião pública como um presidente estritamente voltado a manter sua sobrevivência até o final de 2018. Valor: O senhor acha que a reforma da Previdência não passa? Moisés: O governo já está admitindo que, para colocar em votação, vai reduzir a proposta a uma reforma mínima, estritamente relacionada com a diminuição dos tetos de idade em alguns casos.

Nós todos, nesse período, tivemos que aprender que os déficits da Previdência comprometem os recursos do Estado, inclusive para aplicar em políticas públicas e sociais. O governo chama a atenção para um problema, mas não tem força suficiente para realizar o que poderia esperar dele. Alguém poderia dizer que do ponto de vista do mercado seria melhor mantê-lo do que retirá-lo. Mas o mercado funciona bem assim, com o governo fragilizado e que não consegue enfrentar agendas como essa da Previdência, que é indispensável para manter e dar eficácia para o que foi aprovado, que é a emenda do teto de gastos? Se não tiver o resultado esperado, vamos ter a frustração da perspectiva de retomada da economia e de criação de empregos. Essa limitação política, com a instabilidade do presidencialismo de coalizão tem efeitos para a economia e políticas sociais. Valor: O presidente da Câmara já disse, em diversas ocasiões, que a agenda da Câmara é a do mercado. Por que o senhor acha que não vingou uma articulação para tirar Temer e colocar Rodrigo Maia? Moisés: Por três razões. O Congresso se omitiu do seu papel de fiscalização e controle do presidente e de levar adiante a denúncia e o processo que seria realizado pelo Supremo.

A segunda razão é que, a exemplo do que ocorreu com a presidente Dilma Rousseff, não houve manifestação de rua pedindo a saída de Temer e eventualmente acenando para um substituto. Em terceiro lugar, embora o mercado e o mundo empresarial estejam extremamente preocupados com o desdobramento da crise política, eles estão acompanhando mais a ação da equipe econômica do que da equipe política. Se não tem uma instituição capaz de levar adiante a denúncia, se não tem apoio popular, do mercado, ele acaba se sustentando de maneira precária, mas sem condições de realizar seu próprio programa de governo.

Valor: Mas ao mercado interessa a agenda econômica, que está paralisada. Moisés: Algumas das medidas tomadas criaram condições para pequenas recuperações, e o mercado ficou ligado nessa perspectiva. Tem alguns setores do mundo empresarial que, apesar de lamentar que Temer esteja de novo incluso em denúncia, preferem que não se mexa muito no quadro porque seria introduzir um novo elemento de instabilidade. Tenho uma visão crítica sobre isso, porque não se constrói estabilidade ou governabilidade em condições de que mandatário do país não é reconhecido pela sociedade. A grande expectativa levantada em torno do governo era de que alguma maneira, com base em uma equipe econômica confiável, ele retomaria condições este ano e, em 2018, teria crescimento mínimo da economia, para começar a recuperar o emprego e, ao mesmo tempo, colocar a discussão e a definição do governo em outro patamar. Como isso não está se realizando, significa que o novo governo que for eleito vai enfrentar exatamente os mesmos desafios. Uma das avaliações de parte do mercado é evitar mexer nas coisas para que não se agrave o cenário ainda mais. Acho que é escolha temerária. Estamos em um certo círculo vicioso, a agenda fica paralisada, congelada. A Previdência seria votada no final do primeiro semestre. Depois, seria votada até o fim de outubro, mas já estamos no fim de outubro. O ano vai acabar e não vislumbro condições para votar no curto prazo. Valor: E o PSDB? Como esse desgaste do governo Temer pode recair sobre o partido? Moisés: Essa divisão interna que não se resolve pode ter efeito de dissolução do papel do PSDB. O partido poderia ser alternativa ao que foi o PT.

O PT se queimou pelo mensalão e Lava-Jato e começou a perder espaço na eleição de 2016. PSDB e PMDB foram alguns que ocuparam parte desse espaço. Mas o PSDB precisa confirmar não só que é partido alternativo, que tem projeto para o país. E dividido não consegue apresentar projeto nenhum, não consegue mostrar em que direção a sociedade deve caminhar. É muito grave que se mantenha em um período muito longo a situação de um partido que não sabe dizer a seus eleitores qual é sua orientação no momento e o projeto de futuro, para ganhar as eleições de 2018 e governar, o que vai fazer para retomar a economia. Tem um problema grave de déficit de liderança. Quando tem partido perdido, sem rumo, significa que não tem liderança capaz de dialogar com a sociedade.

Valor: O vice-presidente do PSDB Alberto Goldman diz que há o risco de o PSDB ficar fora do segundo turno de 2018 se não fizer coalizão de centro. O senhor vê esse cenário? Moisés: Sim, há o risco de o partido ficar num gueto e não estabelecer alianças com outros atores políticos. O PSDB é de centro. O desafio que está colocado é consolidar essa posição e se credenciar como alternativa capaz de ganhar eleição. Precisa elaborar projeto mostrando que o populismo de direita e de esquerda são negativos para a retomada da economia e podem reduzir a democracia. A ameaça de uma alternativa populista está presente porque a crise econômica deixou sequelas: criou desemprego, reduziu renda e segmentos que tinham sido incluídos no processo de consumo pelos governos Lula e Dilma perderam status, renda. Tem um segmento de eleitores ressentidos sobre o que tinha ganhado e já perdeu e não tem perspectiva do que recuperar. O risco de populismo está associado a esse perfil. Pode ser tanto de esquerda quanto de direita. O risco maior é de as forças políticas do centro não conseguirem dialogar com a sociedade.

Está demorando muito para apresentar um projeto de recuperação do país. Valor: A corrupção abre espaço para o populismo? Moisés: O aumento da percepção da corrupção e de sua natureza sistêmica aumenta a descrença e desconfiança das instituições. Quem faz isso não é a Lava-Jato, mas é a existência da própria corrupção. A LavaJato aponta para uma saída não populista, de evitar a continuidade da corrupção. Valor: Que perspectivas o senhor vê para a esquerda? Moisés: O envolvimento do PT e do presidente Lula em atos de corrupção e as escolhas econômicas do governo Dilma queimaram o filme da esquerda.

Só tem uma alternativa: precisa se reinventar novamente. Fazer autocrítica do envolvimento com corrupção e da ideia de que os fins sociais justificam ter se envolvido em práticas que eram das elites tradicionais mais criticadas pelo PT. É um processo de reinvenção da esquerda, para mostrar que existem políticas públicas que podem ser adotadas em um contexto democrático sem apelar para a corrupção. Para isso precisa pedir desculpas para a sociedade. Se não fizer isso, o que aconteceu em 2016 vai se reafirmar em 2018: vai ser um processo de progressivo de perda de apoio e de espaço da esquerda.

 



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