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País terá que aumentar imposto, diz Pessôa

Veículo: Valor 

Seção: Notícias 

A solução do grave problema fiscal brasileiro passa pela adoção de reformas que diminuam o ritmo de crescimento das despesas públicas e também pela elevação de impostos, diz Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Para ele, se o país não enfrentar "o conflito distributivo" civilizadamente, o resultado será a volta da inflação alta. Pessôa vê 2019 como "um ano muito importante" para o Brasil, quando o país vai decidir como enfrentar esse problema. "Gerir o conflito distributivo de modo civilizado será, por meio do Congresso, fazer reformas que reduzam a taxa de crescimento do gasto público e aumentem a carga tributária, para que nós consigamos financiar a dívida pública, financiar o Estado brasileiro, sem cair em dominância fiscal e inflação", resume ele, também sócio da consultoria de investimento Reliance. 

Pessôa diz ainda que a aprovação da reforma da Previdência e de outras medidas que enfrentem o ritmo insustentável de expansão das despesas públicas são fundamentais para o país transitar de fato para um regime de juros baixos. Ele afirma ver um "imenso potencial de crescimento da economia brasileira", desde que o país faça as coisas certas. "O problema é que fazer as coisas certas significa mexer em direitos adquiridos. Nós temos um setor público que prometeu para grupos da sociedade coisas que não pode entregar. Aí ninguém quer ceder", diz Pessôa. Embora considere crucial a adoção de medidas que diminuam o ritmo de expansão dos gastos públicos, ele acredita que será preciso elevar impostos para enfrentar o rombo fiscal. "Tem que fazer primeiro o gasto, para que a taxa de crescimento das despesas fique contida, e depois tem que fazer imposto", diz Pessôa, para quem se deve repensar a isenção de lucros, juros e dividendos no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). "Isso pega aquele bando de gente que acha que é classe média, que somos nós. É o 1% da população em termos de renda. Todo mundo tem a sua 'pejotinha' ou o seu Simples, pagando menos imposto do que pagaria se fosse CLT", diz ele. 

A seguir, os principais trechos da entrevista. 

Valor: O PIB cresceu 1% no primeiro trimestre, um desempenho concentrado na agropecuária. Qual a expectativa para o segundo trimestre?  Samuel Pessôa: O número da equipe liderada pela economista Silvia Matos, do Ibre, é uma queda de 0,2% [em relação ao trimestre anterior, feito o ajuste sazonal]. Se tirar a agropecuária, é de uma alta de 0,1%. Ou seja, a economia está vindo. 

Valor: Como a agropecuária foi muito forte no primeiro trimestre, ela devolve parte da alta no segundo? Pessôa: Exatamente. E o PIB excluindo agropecuária deve ser mais positivo no terceiro trimestre. Há uma recuperação. Ela parece sólida e disseminada, mas é lenta, diferentemente de outras. 

Valor: Por que a recuperação tem sido tão lenta? Pessôa: Por causa dos motivos que levaram à crise. Há dois principais. O primeiro é a questão fiscal. Ter um Tesouro que não consegue se financiar, não saber qual vai ser o acordo político que vai resolver esse problema, gera um nível de incerteza gigante na economia. Não dá para o investimento voltar. 

Valor: Qual é o segundo motivo? Pessôa: O segundo é o que faz esta crise ser parecida com a crise dos anos 1980. A crise dos anos 80 foi uma crise externa. A de agora não tem nada externo. Do ponto de vista macroeconômico, são muitos diferentes. Mas, do ponto de vista microeconômico, são idênticas, e a mais recente é pior. 

Valor: Em que sentido? Pessôa: As duas foram precedidas por um longo período de intervencionismo estatal estimulando excesso de investimento em alguns setores, escolhidos pelos burocratas de plantão, por critérios em geral errados. Excesso de investimento significa investimento que não dá retorno. Investiu-se muito num setor, acumulou-se muita dívida e a capacidade de geração de caixa que esse investimento produziu não é compatível com a dívida que ele gerou. 

Valor: Dilma foi o Geisel do PT? Pessôa: Sim, mas isso começou antes de 2011. Foi quando a Dilma disse que o ajuste fiscal era rudimentar. Lá foi a transição, na entrevista que deu ao "Estado de S. Paulo" em novembro de 2005, que marcou a transição do mundo "Malocci" [combinação de Malan com Palocci, uma referência ao dois ex-ministros da Fazenda] para um intervencionismo brizolista, geiselista, getulista. Foi uma mudança de política econômica aprovada e estimulada pelo Lula. Como a crise mais recente teve um sobreinvestimento num monte de setores, tem digestão longa. 

Valor: Essa recuperação está de fato calcada num ajuste de estoques, na retomada cíclica? Pessôa: Acho que ela é cíclica, mas além disso tem um outro elemento. O mundo melhorou, as commodities subiram um pouquinho e a América Latina, em especial a América do Sul, teve um ganho de renda. Quando tem ganho de renda na América do Sul, nós exportamos manufaturados para os países da região. Isso ocorreu muito claramente no ciclo de 2002 a 2010. 

Valor: A Selic deve cair para 7,5%, segundo o consenso de mercado. Isso vai estimular um crescimento robusto da economia em 2018? Pessôa: Vai. O número que nós temos no Ibre é 1,8%, 2%. Um crescimento de 2% no ano que vem está na conta de todo mundo. Para este ano, esperamos um crescimento de 0,3%. Há o efeito da política monetária e o processo de digestão dos excessos. 

Valor: A queda de juros é sustentável ou os problemas das contas públicas podem fazer com que a taxa tenha que subir com mais força quando a ociosidade acabar? Pessôa: Acho que há a possibilidade de nós estarmos transitando para um regime de juros baixos. Nós ficamos 25 anos em que o gasto primário crescia mais do que o PIB. Se nós conseguirmos fazer a reforma da Previdência e outras reformas e conseguirmos rodar alguns anos com o gasto primário crescendo aquém do PIB, e sem parafiscal [referência à expansão forte do crédito dos bancos públicos], nós não sabemos como a economia vai se comportar. É possível que o país vá para esse equilíbrio de juro baixo por causa desses fatores. O que pode gorar essa história? Como a dívida pública está crescendo muito, é possível que o prêmio de risco aumente muito. Nós podemos ter um juro alto por causa do prêmio de risco. Mas me parece que, se nós conseguirmos fazer as reformas necessárias para que a PEC do teto seja atendida e se nós controlarmos o parafiscal, nós poderemos ir para um equilíbrio de um juro colombiano, peruano, chileno.

Valor: Antes da crise política, havia a expectativa de aprovação de uma reforma da Previdência razoável Hoje, o mais provável é que não seja aprovada reforma nenhuma ou uma reforma muito diluída. Isso não coloca em risco a melhora estrutural das contas públicas? Pessôa: Não há a menor dúvida. Se nós não fizermos a reforma da Previdência, vai ser muito difícil transitar para um regime de juro baixo. Um dos maiores fatores que explicam juro real elevado como equilíbrio de longo prazo no Brasil é uma estrutura de gastos públicos que requer que a despesa primária da União cresça além do PIB sistematicamente, há mais de 20 anos. Se não conseguir mudar isso, é difícil convergir para o juro baixo. 

Valor: Mas mesmo a reforma da Previdência não é suficiente, certo? Sem outras reformas, o teto de gastos não será cumprido. Pessôa: Acho o seguinte. É necessário fazer um monte de reformas pelo lado do gasto. Talvez depois da reforma da Previdência repensar o abono salarial e um monte de coisas. E vai ter que aumentar imposto. Eu continuo achando isso. 

Valor: Parte do ajuste requer aumento de tributos? Pessôa: Nós só não estamos falando muito de imposto hoje porque não adianta aumentar imposto se não fizer o lado do gasto. Tem que fazer primeiro o gasto, para que a taxa de crescimento das despesas fique contida, e depois tem que fazer imposto. Acho que aproveitar essa oportunidade para repensar a isenção de lucros, juros e dividendos no Imposto de Renda da pessoa física é um item que deve ser tratado. E a grande distorção na isenção de lucros e dividendos do IR para a pessoa física não é dos dividendos das empresas que estão no lucro real, como os bancos, Petrobras, Vale. Essas empresas pagam na pessoa jurídica 34%, se somar a CSLL e IRPJ. Se for do setor financeiro, é quase 44%. O IR delas é muito alto e a justificativa de não tributar na física é por causa disso. A distorção maior é Simples e lucro presumido. Isso pega aquele bando de gente que acha que é classe média, que somos nós. É o 1% da população em termos de renda. Todo mundo tem a sua "pejotinha" ou o seu Simples, pagando menos imposto do que pagaria se fosse CLT. É um claro caso de elisão fiscal. Isso terá que ser tratado

fosse CLT. É um claro caso de elisão fiscal. Isso terá que ser tratado. Valor: Qual é o custo de deixar para aprovar a reforma da Previdência no próximo governo? Pessôa: O primeiro custo é que a reforma no próximo governo daqui a dois anos vai ter que ser muito maior. O segundo custo é que nós estamos passando por um período calma, mas essa calma dos mercados tem um componente enganador. Ela tem sido produzida por uma situação internacional muito favorável. Isso pode mudar. 

Valor: Em que medida a produtividade baixa limita as perspectivas de crescimento no futuro, quando o país sair da recessão e a retomada cíclica estiver caminhando? Pessôa: A população ocupada cresce, sei lá, 1% ao ano. A produtividade no mundo cresce 1% ao mundo. Vamos dizer que o Brasil, sem grandes esforços, se arrumar a macroeconomia, a produtividade cresce 1% ao ano. Aí você teria 2% de crescimento. Grosso modo, esse seria o crescimento potencial. [Mas], se você fizer a reforma trabalhista, como já fez, e continuar na linha de reformas, isso pode ir para 3,5% tranquilamente. 

Valor: É possível ser otimista quanto à produtividade? Pessôa: É verdade que nós perdemos o bônus demográfico e nós estamos há 30 anos estagnados, mas aparentemente na política e no desenvolvimento institucional há uma linha crescente. Nós melhoramos. Eu fico surpreso com a capacidade reformadora do governo Temer. Não consigo achar que essa capacidade reformadora é coisa de um governo golpista. Acho que há alguma força na sociedade que quer isso, mesmo que as pesquisas digam que não. As pessoas querem um futuro melhor, e a única coisa que o PT soube oferecer ao país em 13 anos foi aumentar a carga tributária e aumentar gasto público. As pessoas perceberam que isso não dá certo. É necessário mais do que isso. Aumentar gasto com programa social é importante, o país é desigual, é injusto, mas na verdade no período petista foi um período muito atrasado, conservador. A forma como o país contrata, avalia e remunera o servidor público é igualzinha à de 20 anos atrás. O PT não contribuiu com uma linha para evoluir nessa dimensão. 

Valor: Essa agenda de reformas e de austeridade fiscal vai ter apelo nas eleições? Pessôa: Essa pergunta é para um cientista político. Mas a impressão que eu tenho, e talvez seja apenas otimismo exagerado, é que acho impossível, depois dessa crise, de a reforma da Previdência estar na agenda, de se ter feito reforma trabalhista, que os políticos vão conseguir fazer uma campanha sem falar dos temas difíceis. 

Valor: Quem quer que seja o presidente a partir de 2019 vai ter que fazer a reforma da Previdência? Pessôa: Vai. Ou faz a reforma da Previdência ou vai para a inflação. Eu não consigo ver uma alternativa. O maior risco é a volta da inflação. Os meus colegas economistas heterodoxos dizem que esse meu discurso é terrorista. Mas eu olho a dinâmica da dívida pública... 

Valor: Como avalia a situação fiscal? Pessôa: Eu não vejo um ganho cíclico de arrecadação forte. E acho que a receita vai reagir muito defasada, porque as empresas acumularam prejuízos, que vão compensar. O imposto é sobre o lucro. Nos primeiros um, dois anos depois da recuperação, a receita não vai responder, porque as empresas estarão compensando prejuízos passados. 

Valor: E o problema de gasto? Pessôa: Sem reforma da Previdência, o problema de gastos não está enfrentado. E também é necessário um monte de [outras] coisas. 

Valor: Se não atacar a questão dos gastos obrigatórios, há o risco de o próximo governo ter como prioridade tirar o teto, não? Pessôa: Se mexer no teto, o câmbio vai a R$ 5. Acabou o governo. O mercado não está calminho à toa. Não é pelos belos olhos do Michel Temer. O teto foi uma coisa muito dramática. O mercado acreditou nesse negócio. A âncora é o teto. 

Valor: Mesmo se ele for inviável? Pessôa: Se deixar o teto passar [ser rompido], aí você não pode contratar, não pode dar um aumento de salário, não pode dar aumento do salário mínimo além da inflação. Toda a lógica do teto é que, quando isso ocorrer, vai gerar tanto problema que você vai constituir a base de apoio para aprovar a reforma da Previdência e fazer tudo o que precisa fazer. Para gerir o conflito distributivo de modo civilizado.

Valor: O governo passou a projetar déficits primários maiores para o período de 2017 a 2020. Como o sr. avalia essa mudança? Pessôa: É ruim. O ideal seria que a maior projeção de déficits ficassem restritos ao biênio 2017 e 2018 em função da piora da receita. Com a retomada da economia e a volta da receita, os déficits fiscais deveriam ser os anteriores. Piorou a dinâmica da dívida. Quem for eleito para 2019 terá que encontrar novas fontes de receita, além de ter que fazer um monte de reforma para cortar gastos. 

Valor: Há motivos para ser otimista com a economia brasileira nos próximos quatro ou cinco anos? Pessôa: Há motivos para ser otimista e para ser pessimista. Se nós fizermos as coisas certas, o potencial de crescimento é imenso. O Brasil pode ser um país de renda alta. O problema é que fazer as coisas certas significa mexer em direitos adquiridos. Nós temos um setor público que prometeu para grupos da sociedade coisas que não pode entregar. Aí ninguém quer ceder. Pegue o exemplo da Fiesp. Ela faz campanha para não aumentar imposto. Mas não quer mexer nos 2,5% de contribuição sobre a folha compulsória que é a renda dela, o sistema S. Ela também não quer a TLP, que afeta os subsídios do BNDES. Ela quer ajuste fiscal, desde que não seja no BNDES, e não pode aumentar imposto. Os servidores públicos não querem mexer em nada - na verdade, eles querem que aumentem os gastos com eles. 

Valor: O que ocorrerá se esse problema não for resolvido? Pessôa: Se não resolver, vai ser por inflação. Ah, o mundo é desinflacionário. Mas a Argentina tem 30%, vinte e poucos por cento, de inflação. A Venezuela tem 700%. Se a Argentina e a Venezuela foram, porque nós não podemos ir? Nós somos melhores do que eles? 

Valor: E o projeto que substitui a TJLP pela TLP nos empréstimos do BNDES? Por que se tornou o novo pomo da discórdia entre ortodoxos e desenvolvimentistas? Pessôa: Eu gosto muito do projeto. A heterodoxia brasileira tem uma visão de que o processo de desenvolvimento está ligado à indústria, enquanto para nós, ortodoxos, o crescimento é um processo de desenvolvimento institucional - o que você produz não é muito importante. A heterodoxia pensa diferente. Se nós não tivermos indústria, nós vamos ser pobres. Para nós, não é muito importante o que o país faz. Se as instituições funcionarem, o país vai ser rico de qualquer modo. Há uma ou outra falha de mercado, principalmente associada à tecnologia, introdução de novas práticas, novas técnicas, novos produtos, mas em geral o desenvolvimento é essencialmente um fenômeno institucional. Economista heterodoxo adora dar subsídio para a indústria porque eles acham que isso gera crescimento econômico. Na raiz da divergência da TLP, está essa leitura da heterodoxia brasileira de que a indústria é um setor essencial para o desenvolvimento econômico. É claro que há muito grupo de interesse. Mas eu não estou falando disso, mas da visão ideológica que sustenta esse tipo de coisa. 

Valor: Qual deveria ser o papel do BNDES? Como o setor privado vai buscar financiamento? Pessôa: Como todo mundo sem acesso ao BNDES. Pouca gente tem acesso ao BNDES. É muito dinheiro, mas é pouca gente. Quem não tem acesso ao BNDES faz alguma coisa para conseguir financiamento. Eu quero regra igual para todo mundo. Tratar os iguais de modo igual.

Valor: Qual deve ser o papel do BNDES? Pessôa: O de desenhar e ajudar os investimentos, fazer ou avaliar os projetos, participar de grandes condomínios de financiamento, subscrever debêntures, ajudar em financiamento à exportação - ser o Eximbank brasileiro. E, sempre que o Congresso decidir conceder recursos para subsídios para setores que achar importantes, subsidiar. 

Valor: É boa ideia privatizar a Eletrobras agora? Pessôa: Acho positivo. Melhorará a governança da empresa e reduzirá o espaço para que futuros governos populistas empreguem a empresa para satisfazer interesses políticos eleitorais de curto prazo sem atender aos interesses de longo prazo da sociedade. Evidentemente, para eu fazer uma avaliação mais profunda, é necessário conhecer o desenho da operação. 

Valor: Em 2014, o sr. estava bastante pessimista com a economia brasileira. Hoje está mais ou menos pessimista do que naquela época? Pessôa: O meu pessimismo de 2014 se materializou - e o que o que ocorreu foi ainda pior do que eu imaginava. Acho que 2019 vai ser um ano muito importante. Nós vamos decidir se nós vamos gerir o nosso conflito distributivo de modo civilizado ou não. 

Valor: O é que exatamente gerir o conflito distributivo de modo civilizado? Pessôa: Será, por meio do Congresso, fazer reformas que reduzam a taxa de crescimento do gasto público e aumentem a carga tributária, para que nós consigamos financiar a dívida pública, financiar o Estado brasileiro, sem cair em dominância fiscal e inflação. 

Valor: O governo Temer não faz isso? Ele é só uma transição? Pessôa: O governo Temer está fazendo muito pra isso, mais do que eu imaginaria que ele fosse fazer, mas ele tem pouco tempo. 

 

 



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