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Um silêncio que faz falta

Veículo: Estadão 

Seção: Opnião 

Anteontem, numa palestra em São Paulo, o juiz federal Sergio Moro criticou a proposta de reforma política em curso no Congresso Nacional, dizendo que ela não é uma “verdadeira reforma política”. Moro vê um traço de continuísmo no projeto: “Há uma tendência de quem está dentro do sistema, de quem tem um cargo, queira continuar dentro e queira deixar fora quem está fora”. Segundo ele, o financiamento das campanhas não deveria ser exclusivamente público (fala-se na destinação de R$ 3,6 bilhões do erário para pagar propaganda política) e as empresas que tenham contratos com o Estado jamais poderiam ser doadoras. Para tranquilizar a audiência, por fim, o juiz assegurou que não tem planos de disputar eleições: “Reitero quantas vezes forem necessárias que não sou candidato, não serei candidato”.

Não são opiniões disparatadas. Em alguma medida, aliás, traduzem bom senso e ponderação. O problema, aqui, é de outra ordem. Como juiz responsável por julgar em primeira instância as denúncias da Operação Lava Jato, Sérgio Moro decide sobre os destinos de uma alentada fieira de políticos, alguns deles com enorme liderança sobre o Congresso Nacional. Se agora, além de julgar os políticos, ele passa a opinar publicamente sobre como devem ser escritas as leis que disciplinarão as atividades desses mesmos políticos, pode provocar embaraços desnecessários.

Podem os integrantes do Poder Judiciário tentar influir no Poder Legislativo? É claro que não. Mas, neste caso, dizer apenas “não” é dizer pouco. Sergio Moro está em pleno exercício de suas atribuições legais e legítimas para julgar políticos acusados de corrupção. Essas atribuições lhe foram conferidas por leis, e essas leis, por sua vez, foram elaboradas e aprovadas pelo Poder Legislativo. É bem por isso, aliás, que os dois poderes, o Legislativo e o Judiciário, só funcionam bem quando funcionam separadamente, bem separadamente. O primeiro faz as leis, o segundo as aplica. O juiz não deve redigir leis (nem deve interferir na função legislativa), assim como o legislador não deve julgar (nem deve tentar interferir na função judiciária) – é o óbvio do óbvio. Quando, no entanto, a voz de um juiz – que não é um juiz qualquer – toma parte num debate público que se dá no âmbito do Legislativo, temos um curto-circuito evidente.

É bem verdade que juízes são cidadãos e que, como cidadãos, têm o direito de votar e de participar dos debates públicos. Há, no entanto, um detalhe crucial. Como exercem o poder de punir os demais cidadãos em nome do Estado, os juízes não são cidadãos como os demais. Não por acaso, a norma constitucional os diferencia e veda, a todos eles, a atividade político-partidária (art. 95). Nada mais razoável. Um juiz que saia por aí declarando simpatias ou antipatias partidárias perde credibilidade e se arrisca a ver suas sentenças despertarem desconfiança, o que seria um desastre para a ordem democrática. Não é sem motivo que se costuma dizer que o silêncio e a discrição são virtudes capitais na carreira da magistratura.

Não que um magistrado não possa nunca opinar sobre coisa alguma. O simples fato de expor publicamente seu ponto de vista sobre a reforma política não leva um juiz a incorrer em atividade político-partidária. O problema é menos explícito. Nós não estamos falando de um juiz qualquer. Mais do que isso, não estamos falando de uma reforma qualquer. A reforma política trata da mesma matéria que cabe a Sergio Moro julgar na Operação Lava Jato – eis o que complica ainda mais a situação.

A favor de Moro, admitamos que, no conjunto dos magistrados brasileiros, ele está longe de figurar entre os mais falastrões. Estamos numa terra de togas loquazes, de histrionices jurisdicionais e de ministros de tribunais superiores que não podem ver um holofote aceso e um microfone em riste que logo saem perdigotando sobre fatos e direitos em geral, sem tomar o cuidado de preservar aqueles fatos e direitos sobre os quais deverão emitir juízo. Considerada a paisagem, enfim, Moro não está no pelotão dos mais desabridos. Mas, outra vez, lembremos que não estamos falando de um juiz qualquer, numa posição qualquer. A imagem do combate à corrupção no Brasil depende diretamente, mais do que nunca, da virtude da discrição deste juiz em particular.

Que a Operação Lava Jato está sob ameaça todos sabemos. Forças monstruosas (em alianças absurdas) vão se erguer para contê-la ou, se possível, para estilhaçá-la de uma vez. Para complicar o quadro, todos sabemos, também, que a Lava Jato cometeu erros e abusos (alguns até admitidos pelo próprio Moro), o que abre espaço para que ela hoje receba críticas justificadas. Mas o pior são as críticas injustificadas, que proliferam cada vez mais.

Neste quadro, uma das piores coisas que podem acontecer para o combate à corrupção no Brasil é a impressão generalizada de que as autoridades judiciárias incumbidas de julgar os suspeitos de desvio de dinheiro público estão a serviço de um projeto político, seja ele qual for. Contra esse risco, os integrantes do Poder Judiciário precisam atuar de modo a desmontar essa impressão. E como fazer isso? Simples: pelo silêncio no debate público – e pela clareza, pela temperança e pela sabedoria que saibam expressar nos autos.

Ao menos até agora, não se pode acusar Sergio Moro de exercer atividade político-partidária (os que o atacam com base nessa suspeição agem de má-fé). Não obstante, ele faria bem se procurasse não dar margem para que essas insinuações prosperem. Moro deveria ser o primeiro a mostrar que a reforma política, certa ou errada, não é da sua competência. No mais, além de dizer que não é candidato, seria melhor se ele não mais discursasse como candidato. Juízes não devem se apresentar como justiceiros nem como políticos.

(P.S.: boa parte dos parágrafos acima vale também para certos procuradores federais.)



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