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“É a primeira proposta de reforma integral desde a estabilização”

Veículo: Valor Economico 

Seção: Brasil 


Transição mais dura e regra do mínimo devem ficar para depois de 2018, avalia Fabio Giambiagi

O economista Fabio Giambiagi elogia a “abrangência e ambição” da proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo. “Pela primeira vez, desde o Plano Real, temos na mesa não uma proposta de reforma “fatiada”, que toca apenas em um ou dois pontos, e sim uma proposta de reforma integral”, diz Giambiagi, um dos principais especialistas do país no assunto. Ele ressalta que o projeto inclui a definição da idade mínima de 65 anos, uma regra de transição, mudança das pensões por morte, separação entre benefícios assistenciais e previdenciários e igualdade de regras para trabalhadores rurais e urbanos, homens e mulheres e professores e não professores no fim da transição. Ainda assim, ele acredita que dois pontos ficarão para ser tratados pelo próximo governo: uma regra mais dura de transição e uma nova regra para o salário mínimo.

Defensor há muitos anos da necessidade de mudanças amplas na Previdência, Giambiagi considera que o próximo governo possivelmente terá de enviar ao Congresso em 2019 uma nova proposta de emenda constitucional (PEC), “com regras de transição mais duras, sob pena de a despesa do INSS esmagar o espaço para os demais gastos”. O economista, atualmente superintendente de planejamento e pesquisa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), diz falar sobre o assunto em caráter pessoal.

O projeto apresentado pelo governo prevê transição para homens acima de 50 anos e mulheres com mais de 45. Nesses casos, calcula-se o tempo que falta para se aposentar, acrescentando-se 50% — se faltam 10 anos, por exemplo, será necessário trabalhar por mais 15.

Para Giambiagi, também deverá ser necessário desvincular o salário mínimo do piso das aposentadorias. “Mas também nesse caso eu entendo a estratégia oficial. Mexer nisso implica mudar a Constituição e isso abriria uma enorme frente de batalha. Por outro lado, esse governo não tem incentivo político nenhum para tratar do assunto, porque a regra do salário mínimo está dada [até 2019, o piso salarial do país será corrigido pela inflação do ano anterior e o PIB de dois anos antes]”.

Ao mesmo tempo, Giambiagi vê espaço para o governo ceder em alguns pontos. É o caso da proibição de se acumular pensão por morte com aposentadoria, que ele sugere ser repensada parcialmente, e do cálculo do benefício, que, pela proposta, exigirá 49 anos de contribuição para que se obtenha o valor integral.

O economista considera ainda que será “importante rever” a exclusão dos militares da reforma, embora acredite haver especificidades na carreira que justificam a existência de algumas regras diferenciadas. “O ponto é que haver uma justificativa para alguma diferenciação não justifica que nada mude”, avalia Giambiagi. Para ele, não existir uma proposta para os militares prejudica a tramitação do projeto, desvia o debate e gera um sentimento de injustiça. “Confio que em janeiro ou fevereiro o governo envie a proposta para os militares e então possamos melhorar os termos do debate. (...) A realidade é dura para todos.”

A seguir, a íntegra da entrevista com o economista, realizada numa troca de e-mails.

Valor: O sr. defende há tempos a necessidade de o Brasil promover uma reforma da Previdência. A proposta do governo ficou dentro de suas expectativas?

Fabio Giambiagi: A proposta é muito mais profunda do que eu imaginava no começo do governo atual. Trata-se da proposta de reforma previdenciária mais abrangente desde a estabilização. A equipe coordenada pelo Marcelo Caetano [secretário da Previdência da Fazenda], com a colaboração do suporte jurídico da Casa Civil, fez um excelente trabalho. Pela primeira vez desde o Plano Real, temos na mesa não uma proposta de reforma “fatiada”, que toca apenas em um ou dois pontos e sim uma proposta de reforma integral, incluindo definição da idade mínima, regra de transição, mudança das pensões, separação entre assistência e previdência e igualdade de regras para trabalhadores rurais e urbanos, homens e mulheres e professores e não professores no fim da transição. Pelo contexto em que o governo surgiu seis meses atrás eu não imaginava que fosse ser apresentada uma proposta com essa abrangência e ambição.

Valor: Além de definir uma idade mínima de 65 anos para homens e mulheres, o projeto estabelece um aumento gradual e automático dessa idade, em função do aumento da expectativa de vida. Essa mudança é viável?

Giambiagi: Penso que sim. A idade de 65 anos é essencial ao projeto e é muito importante que no processo de negociação política que fatalmente ocorrerá, o governo não se afaste desse objetivo, porque ele é o coração da reforma. Na minha opinião, a mudança é viável pelo fato de que ela afetará a quem tem hoje menos de 50 anos no caso dos homens e de 45 no das mulheres, significando que haverá muito tempo para as pessoas se adaptarem. Além disso, ela segue os padrões estabelecidos na maioria dos países relevantes do mundo e é consistente com as tendências demográficas do país. Quanto à adaptação gradual posterior, ela será um efeito de segunda ordem diante do que acontecerá com a idade mínima de 65 anos. Passando a idade mínima de 65 anos para daqui a 15 anos [devido à regra de transição], não haverá problemas muito maiores para depois passar para 66 anos, por exemplo, daqui a 25 ou 30 anos. O processo será bastante gradual, a partir daí.

Valor: O Brasil gasta muito mais que a média dos outros países com pensão por morte. A proposta proíbe a acumulação de pensão e aposentadoria, e o valor da pensão passará a ser de 50% mais 10% por dependente. São regras razoáveis?

Giambiagi: Aqui é preciso fazer uma distinção. Uma coisa é questionar, como eu e vários especialistas fazemos há anos, o fato de a pensão ser de 100% do benefício original, percentual que não se justifica porque o fato é que ao morrer um dos cônjuges, a despesa da unidade familiar que ele compunha com o cônjuge remanescente diminui. Isso dá amparo à tese de reduzir o percentual das futuras pensões. Outra coisa, porém, é partir de um extremo a outro e considerar que em caso de recebimento de aposentadoria a pensão será nula. Por quê? Pensemos o caso de um casal com 80 anos de idade em ambos casos e onde ambos recebam individualmente uma aposentadoria de R$ 1.000. Ao falecer um dos dois membros do casal, despesas com saúde, lazer ou alimentação dessa unidade familiar irão provavelmente cair em torno de 50%. Outras, porém, não irão mudar um centavo, como aluguel e condomínio. Ter uma redução da renda familiar de 50 %, para o cônjuge que ficar morando no local, pode ser uma perda muito grande. Por isso eu defendo a regra da redução da pensão, mas sugiro repensar parcialmente a proibição de acumulação com a aposentadoria. Na minha modesta opinião, esse deveria ser um dos dois ou três pontos em que o governo poderia ceder algo na negociação.

Valor: A proposta define regras de transição para homens a partir de 50 anos e mulheres a partir de 45. O limite é adequado ou deveria ser um pouco mais duro?

Giambiagi: Esse é um ponto em que acho que o governo foi brando, sob a ótica de uma reforma ideal. A explicação para esse meu ponto de vista pode ser resumida na frase que tenho citado, de que “50% de pouco é pouquinho”. A princípio, ter um “pedágio” de 50% a mais do tempo remanescente parece ser elevado e de fato para quem ainda tiver dez anos de contribuição pela frente implicará trabalhar mais cinco além dos dez, o que é bastante. O problema é que, para indivíduos com 50 ou 51 anos aos quais faltarem poucos meses ou anos para se aposentar, a reforma não terá maior efeito. Por exemplo, uma pessoa a quem faltem seis meses para se aposentar terá que contribuir apenas mais três meses em relação ao planejado. Isso significa que ainda durante alguns anos continuaremos tendo pessoas com 52 ou 53 anos se aposentando, o que, num país em plena crise fiscal, beira o surrealismo. Ao mesmo tempo, não é preciso ser um PhD em ciência política para compreender que um governo nascido num contexto tão peculiar trabalha sob condicionantes políticos e sociais muito específicos, de modo que entendo perfeitamente a opção feita. Tenho para mim, porém, que em 2019 o governo que surgir das urnas talvez tenha que enviar uma nova PEC com regras de transição mais duras, sob pena de a despesa do INSS esmagar o espaço para os demais gastos.

Valor: A mudança no cálculo do valor da aposentadoria tem sido criticada por alguns especialistas, por exigir 49 anos de contribuição para a aposentadoria integral. É uma exigência dura demais? Foi introduzida como ponto a ser negociada?

Giambiagi: Há um certo exagero na crítica, que muitas vezes ignora que no resto do mundo a figura da aposentadoria integral está longe de ser algo consagrado e, em muitos casos, o que a pessoa leva para casa é uma fração inferior a 100% das suas contribuições, justamente para dar sustentabilidade ao sistema. Dito isso, sim, tenho a impressão de que esse é outro dos pontos em que há margem para negociação. Talvez o percentual possa aumentar de 51% para 55%. Assim, uma pessoa que começasse a contribuir aos 20 anos teria aposentadoria integral aos 65, quem contribuísse 40 anos o faria com 95%, e assim sucessivamente. Parece um meio termo inteligente.

Valor: A idade mínima para o Benefício de Prestação Continuada (BPC) vai subir gradualmente de 65 para 70 anos, e ele não será mais atrelado ao salário mínimo. Não é uma mudança dura demais, por atingir os mais pobres?

Giambiagi: Veja, aqui é preciso lembrar que quando a Loas [Lei Orgânica de Assistência Social] foi introduzida em 1993, a legislação original tratava da concessão do benefício assistencial aos 70 anos. Depois a idade caiu para 67, e em 2004 para 65 anos. Note então o paradoxo: em 1993, quem chegava vivo até os 70 anos esperava viver até os 80, estatisticamente. Em 2017, quando a PEC deverá ser votada, teremos uma situação na qual a essa idade a expectativa de vida terá aumentado em 5 anos, para 85 anos, ao mesmo tempo em que a idade de concessão do benefício terá diminuído em 5 anos. E nós estamos tratando de uma transição de mais dez anos, quando provavelmente aos 70 as pessoas em média esperarão viver até os 86. Ou seja, em 2027 iremos retornar ao parâmetro fixado em 1993, quando nesse período a expectativa de sobrevida terá aumentado 6 anos. Parece uma mudança bastante lógica.

Valor: O que faltou incluir na proposta? Desvincular o salário mínimo do piso das aposentadorias?

Giambiagi: Definitivamente sim, mas também nesse caso eu entendo a estratégia oficial. Mexer nisso implica mudar a Constituição e isso abriria uma enorme frente de batalha. Por outro lado, esse governo não tem incentivo político nenhum para tratar do assunto, porque a regra do salário mínimo está dada. Minha impressão é que, se a PEC for aprovada, ficarão dois pontos para serem tratados pelo próximo governo acerca do tema previdenciário: uma regra mais dura de transição e uma nova regra para o salário mínimo. A cada dia a sua agonia. Essa será tarefa do próximo governo, não do atual.

Valor: Os militares ficaram fora da proposta. Não é um erro, já que uma parte expressiva do déficit da Previdência pública vem das aposentadorias dos militares, ainda mais um momento em que o governo propõe medidas que vão afetar grande parte da população?

Giambiagi: Esse é um ponto que será importante rever. Faço aqui uma ressalva importante: Guimarães Rosa dizia que “mestre não é quem ensina e sim quem, de repente, aprende” e eu, humildemente, aprendi no diálogo com os militares — que são disciplinados, estudaram a questão e estão muito bem preparados para o debate — que de fato há especificidades da carreira que justificam a existência de algumas regras diferenciadas. O ponto é que haver uma justificativa para alguma diferenciação não justifica que nada mude. No meu diálogo com eles, quando tive oportunidade, tentei apontar que não era justo que as regras fossem mais rígidas para todos e eles fossem a única categoria a conservar as regras originais intactas. O fato de não haver uma proposta para os militares prejudica a tramitação da proposta, desvia o debate e gera um sentimento de injustiça. Confio que em janeiro ou fevereiro o governo envie a proposta para os militares e então possamos melhorar os termos do debate. E essa reforma das regras de aposentadoria dos militares terá que passar por uma extensão do período contributivo e talvez um aumento da alíquota. A realidade é dura para todos.

Valor: O governo voltou atrás e tirou bombeiros e PMs da proposta inicial. Há alguma justificativa para esse tipo de exceção?

Giambiagi: Talvez se deva à situação dos Estados, onde as questões do controle da segurança podem se tornar mais graves. O problema é que exatamente a preservação do status quo tende a agravar a situação fiscal dos Estados, justamente pelas aposentadorias elevadas e precoces de algumas categorias. Torço para que essa questão seja reintroduzida no debate.

Valor: O Brasil vive uma crise fiscal muito grave. As mudanças propostas terão impacto sobre as contas públicas num prazo mais curto ou só terão efeito no longo prazo?

Giambiagi: As mudanças encaminham muito bem os desafios fiscais de longo prazo, mas, pelas razões acima citadas, são insuficientes para dar um conforto fiscal maior para 2019 ou 2020. Por isso é que acredito que o próximo governo terá que fazer um “aperto de parafusos” nas medidas, para ter regras de transição mais rígidas. Dito isso, de qualquer forma, quero chamar a atenção para um ponto importante: se a situação política for controlada, há chances de no começo do terceiro trimestre do ano que vem nós termos a PEC previdenciária aprovada e ter a inflação de 2017 convergindo para a meta, com juros a cami- nho de 10% a 11% no fim do ano. Se nesse contexto houver a percepção de um candidato que se apresente claramente com chances de vitória para dar continuidade em 2019 ao trabalho de reordenamento da economia, poderemos ter uma importante recuperação da confiança no segundo semestre.

Valor: O governo tem uma popularidade muito baixa. Não é um obstáculo para aprovar uma mudança que causa controvérsias como a reforma da Previdência?

Giambiagi: Essa é a pergunta que todos se fazem e muitos me fazem. Tenho respondido que a situação se assemelha à de um navio que está afundando e em que os passageiros do navio se negam a ajudar a tripulação porque não confiam nela. O problema é que cruzar os braços não vai ajudar a tratar da avaria no casco, independentemente de quem compõe a tripulação. O Brasil era um navio que estava afundando e agora temos uma equipe que está fazendo um belíssimo esforço para tirar água do convés, tampar o rombo do casco e endireitar o leme. Não deveríamos deixar que esse esforço fosse colocado a perder pelas injunções da política. Veja, eu trabalhei no BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] em Washington em 1993 e 1994 e era o macroeconomista encarregado de acompanhar a situação econômica da Venezuela, quando o chavismo estava surgindo. A Venezuela era um país até em alguns aspectos melhor do que o Brasil naquela época, mas a semente da desorganização econômica estava começando a ser plantada. Depois voltei lá algumas vezes e hoje aquilo é o que todos sabemos pelos jornais, a caminho da hiperinflação, com uma mega-recessão, filas para tudo, falta até de papel higiênico. Eu estava na Argentina em 31 de dezembro de 2001, quando, na ocasião da queda de Fernando de la Rua, o país teve cinco presidentes em 15 dias. Foi um dos dias mais tristes da minha vida. Não quero isso para o Brasil. A dívida pública está crescendo numa velocidade assustadora. Há que se colocar uma trava nesse processo. Uma primeira foi com a PEC do teto, uma segunda será com a PEC previdenciária e a terceira talvez será com uma minirreforma em 2019. Em 1988, a despesa primária do INSS era de 2,5 % do PIB e este ano será de mais de 8 % do PIB. Onde é que isso vai parar?

O fato de não haver uma proposta para os militares prejudica a tramitação da proposta” Próximo governo terá que fazer um ‘aperto de parafusos’, para ter regras de transição mais rígidas”



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