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O sonho chinês e o pesadelo alemão

Veículo: Valor Economico 

Seção: Opinião 

O sono de governantes em Berlim e em toda a Europa não tem sido muito tranquilo desde que a chinesa Midea ofereceu € 4,5 bilhões para controlar a Kuka, uma das mais avançadas empresas de robótica da Alemanha. A possibilidade de aquisição da empresa alemã que produz robôs de última geração, utilizados pela BMW e Audi, assim como pela americana Boeing, amedronta europeus, americanos e japoneses. O temor é mais do que compreensível, pois se o negócio se concretizar, a quarta revolução industrial, chave para os países avançados, pode prosperar rapidamente na China. 

Se realizada, a compra representará o controle da China de tecnologias críticas que estão na base das estratégias alemãs de manter sua liderança mundial em manufatura, com a plataforma chamada Indústria 4.0. A Kuka lidera segmentos que caminham aceleradamente para a digitalização de processos industriais, que têm no horizonte a automação completa das fábricas. O incômodo no governo de Angela Merkel é profundo e repercute no Parlamento Europeu, com a disseminação de fortes dúvidas sobre a oportunidade ­ ou não­­ de se permitir a passagem de uma empresa­chave para mãos chinesas. 

O espectro de que carros, máquinas e aviões do futuro deixariam de ser símbolos de Stuttgart ou Wolfsburg, e passariam a se apresentar com sotaque mandarim é fonte de fortes debates entre autoridades e empresários. Empresas alemãs como a Siemens, ou a suíça ABB e a multifacetada Airbus são insistentemente sondadas para a formação de um consórcio pan­europeu voltado para a manutenção do controle da Kuka, em uma clara tentativa de desconstrução das ambições da Midea. A convicção de que Beijing jamais permitiria uma aquisição de tecnologia chinesa dessa qualidade alimenta mais as resistências. 

Diante do nervosismo das autoridades, executivos da Midea afirmam que a aquisição seria altamente benéfica para a Kuka, que teria acesso irrestrito ao mercado chinês, que hoje conta com o maior número de robôs instalados na indústria, e se encontra em franca expansão. A questão de fundo é que a China, mais do que a busca de robôs para a indústria, busca um passaporte para o futuro, cuja base é a integração entre manufatura, serviços e comércio. Mais do que uma fábrica de robôs, a Kuka traz a possibilidade de incorporação aos ativos chineses de toda uma plataforma tecnológica, baseada em conhecimento e processos de alto desempenho. 

Pela sua condição de liderança na indústria inteligente, a Alemanha se converteu no prato preferido para saciar o apetite do Reino do Meio: em 2015, 36 empresas alemãs de tecnologia foram adquiridas por grupos chineses, sendo que neste meio ano, outras 25 estão em negociação. Com o aquecimento da demanda, o ticket médio de aquisições na Alemanha também subiu. Apenas neste ano, a ChemChina comprou a KraussMaffei Group, empresa de máquinas, por € 1 bilhão e a Beijing Enterprise Holdings arrematou a EEW Energy Waste, empresa de processamento de resíduos e de energia, por € 1,44 bilhão. O atual lance da Midea representa uma nova escala nas aquisições, expressão maior da determinação chinesa. A China busca robotizar aceleradamente seu parque produtivo, mas quer também se capacitar para a fabricação de produtos high tech, em que precisão e qualidade são essenciais. O trânsito para uma nova indústria, mais digitalizada e baseada em circuitos integrados, sensores, softwares e inteligência artificial é chave para elevar seu padrão produtivo, ainda muito intensivo em trabalho humano. 

A travessia para a produção de bens mais sofisticados é o caminho visualizado pelas autoridades chinesas para entrar no seleto grupo dos países que desenvolvem carros autônomos, programas espaciais avançados, drones, medicamentos e equipamentos de saúde de última geração. A China tenta comprar seu ingresso no grupo de elite dos países que alimentam a construção de um novo paradigma industrial, com consequências para todo o planeta. A competição é aguda, pois também a Coreia, a Índia e outros emergentes procuram não ficar para trás, arriscando se perder nas franjas do mundo avançado, enredados no universo das commodities. Os países atentos a esse movimento usam e abusam de todas as armas, desde a adoção de zonas especiais para o desenvolvimento de robôs e automação, passando pelos estímulos à formação de joint ventures com empresas estrangeiras e atração do investimento externo, até a construção de plataformas exploratórias de novas tecnologias, com mudanças no modo de ensinar engenharia e na qualificação das pessoas. 

O Brasil, por meio de seus ministérios e órgãos como o BNDES, a Finep, ABDI, CNPq, INPI e Inmetro, deveria estar totalmente voltado para esses desdobramentos, seja pelas dificuldades da economia, seja pela profunda crise que devora nossa indústria. No entanto, em ambiente que exala negatividade, o risco no Brasil é que a preocupação dos governantes europeus ante as pretensões chinesas seja interpretado como mais uma permissividade e interferência indevida do Estado no jogo do mercado. Enquanto nosso país decide o que o Estado pode ou não fazer, alemães, europeus e chineses, cada um a sua maneira, usam todo o arsenal disponível para blindar ou ampliar seus ativos tecnológicos. Dada a crise econômica e ausência de prioridades para a alocação dos escassos recursos, nosso país tende, mais uma vez, a ser engolido pelo curto prazo e a empurrar para o gueto nossa Ciência, Tecnologia e Inovação 

Bem que governo e empresários brasileiros poderiam ter comportamento mais básico e correr atrás de algum negócio parecido, ainda que levemente, com o da China. A internacionalização de nossas empresas e universidades, assim como a reformulação de nossa indústria a partir da busca obstinada de conhecimento e tecnologia, dentro e fora do país, são atividades que expressam inteligência e ajudam a elevar a baixa produtividade. E ainda por cima não custam caro, principalmente se comparadas ao preço que nossa economia vai pagar pelo atraso da nossa indústria que não para de se aprofundar. 

Glauco Arbix é professor titular da USP, pesquisador do Observatório da Inovação e ex­presidente da Finep 



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