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Análise: Brasil passa a ter 'recall" indireto de político eleito

Veículo: Valor Econômico

Seção: Política 

Todo jogador deve conhecer as regras do jogo. E um dos aprendizados que se extrai do processo político atual é que daqui por diante o Brasil passa a ter o instituto do "recall" de um político eleito. Quem vencer as eleições presidenciais de 2018, 2022 e assim sucessivamente (espera­se), deve saber que poderá perder o cargo em caso de demonstrada incompetência e/ou de perda da capacidade de governar.

Mas ao contrário do "recall" tradicional, este não está previsto expressamente na lei e nem é feito via consulta popular aos eleitores, mas de maneira indireta, pelo Congresso Nacional. E é por isso que se revela mais traumático, com acusações de que se trata de um golpe. 

A principal razão para isso é o caráter dúbio do instituto do impeachment ­ um processo tido como jurídico e político ­, agravado pela forma pela qual se entendeu que ele deveria ser aplicado no Brasil (com a dobradinha Supremo Tribunal Federal e Legislativo legislando, mas sem mexer nas leis). O tal do rito.

Dizem que o julgamento é político, mas que requereria uma causa jurídica fundamentada. 

Entretanto, o divórcio que existe entre o campo jurídico e político não permite um convívio tranquilo entre as duas esferas. E isso vale tanto para o mérito como para o tempo. 

Na quinta­feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) deixou claro o tamanho dessa distância. 

Entre os pontos discutidos em plenário estavam alegações de cerceamento de direito de defesa e questionamentos ligados ao mérito dos crimes de responsabilidade imputados pela denúncia à presidente Dilma Rousseff. 

Até mesmo alguns ministros que não votaram pelo deferimento das liminares, que não foram aceitas, reconheceram em suas falas que talvez os reclamantes tivessem razão, se a Câmara estivesse prestes a votar no domingo de fato o impeachment da presidente. Mas como do ponto de vista jurídico os deputados estariam apenas autorizando a abertura do processo contra Dilma, que na ótica jurídica ocorrerá apenas ao longo dos próximos meses no Senado, haveria tempo suficiente para se corrigir qualquer imperfeição. 

Ora, ignorar que a decisão política relevante ocorreria, como ocorreu, já no Câmara no domingo, é cegueira jurídica ou má fé. A recepção do processo pelo Senado será mera formalidade. E o afastamento de até 180 dias até que haja de fato o julgamento pelos senadores é temporário apenas no nome. Depois de sair do Palácio do Planalto, Dilma não volta. 

Conclui­se então que o único órgão que teria condições (ainda que o poder para entrar nessa seara seja um tema de debate) para respaldar ou rechaçar o impeachment juridicamente entende que, se tiver que se manifestar, será com o fato consumado, e com Dilma "fora do baralho". 

Dessa forma, a parcela jurídica do processo de impedimento se reduziu drasticamente. 

Havendo desejo de parte relevante da população e condições políticas para se afastar um presidente, basta que se consiga uma acusação minimamente estruturada de crime de responsabilidade ­ o suficiente para tornar o chefe do Executivo réu, ainda que não necessariamente para condená­lo juridicamente ­ que a saída do mandatário fica respaldada legalmente. 

E aí vem uma diferença clara ­ entre outras tantas ­ na comparação do caso atual com o do afastamento do ex­presidente Fernando Collor, em 1992. 

Na época, embora o quadro econômico fosse péssimo e a impopularidade do presidente elevada (assim como hoje), foi a acusação de crime de corrupção que surgiu primeiro e que disparou a defesa do impeachment pela sociedade e pela classe política. 

Agora ocorreu o inverso. A insatisfação com o governo veio primeiro. Mas como inflação alta, PIB afundando e desemprego crescente não constam como crime de responsabilidade, foram atrás da alegação jurídica. 

Como a Lei 1.079, de 1950, lista mais de 60 itens como crime de responsabilidade (muitos bastante abrangentes), entre os quais o desrespeito a lei orçamentária, é razoável imaginar que qualquer presidente incorrerá no futuro em alguma das condutas tidas como ilegais durante seu mandato. Apenas para ilustrar, atrasar precatório, descumprir tratados internacionais (como centenas de empresas alegam que os governos fazem há décadas na tributação) e permitir ainda que tacitamente o descumprimento de qualquer (está escrito qualquer mesmo) lei federal constam da lista. 

E basta a acusação ser feita e aceita. Para que o processo seja consumado politicamente, como foi ontem na Câmara, não é preciso sequer se avaliar se crime imputado foi cometido de forma consciente pelo presidente e se é grave o suficiente do ponto de vista jurídico para "atentar" contra o Constituição, como exige o artigo 85 da Carta de 1988. 

No caso de Dilma, entram na denúncia formal apenas decretos suplementares editados em 2015 e atraso de meses em repasses do plano safra para o BB. Juridicamente, as pedaladas maiores, de dezenas de bilhões, produzidas até 2014, estão de fora por serem do primeiro mandato. 

Há gente que sabe das coisas que garante que essas duas condutas são graves o suficiente para se afastar um presidente, ainda que os dois temas tenham sido sumariamente esquecidos pela grande maioria dos 367 deputados que disseram "sim" ontem na Câmara. 

Mas, de novo, pouco importa o julgamento final dos crimes alegados. O destino político de Dilma e dos futuros presidentes que passarem por processo semelhante já estará selado antes da análise do mérito. 

Ao se aceitar a dominância completa do político sobre o jurídico no processo ­ seja pela ordem inversa da motivação, pela não discussão extensiva do mérito na Câmara e por não se avaliar a dosimetria da pena para a irregularidade identificada ­, o impeachment na prática vira "recall". Com a diferença de que o original e por voto direto, se existisse na lei, seria muito menos traumático e mais legítimo, já que o mandato seria tirado por quem o conferiu.



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