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A Insurreição Das Roupas: É Hora De Assumir As Responsabilidades Da Cadeia De Produção

Veículo: Mode Fica

Seção: Notícias

Eu costumava ter pesadelos sobre plástico. Em 2008, eu passei o dia de ano novo emergida em O Mundo Sem Nós, o difícil experimento de Alan Weisman sobre o que aconteceria com a Terra se a humanidade simplesmente desaparecesse. Existe um monte de informação naquele livro – incluindo alguns fatos malucos sobre gatos- mas o capítulo que realmente me marcou foi no qual Weisman descreve os gigantes blocos de lixo se formando nos rodamoinhos oceânicos. Eu já tinha ouvido falar sobre isso, claro, mas o que eu não havia entendido é que os produtos plásticos neles têm uma taxa de decomposição que deve ser medida em tempo geológico. Um cientista com o qual Weisman conversou sugeriu 100 mil anos como um bom palpite de quanto tempo irá demorar para a maior parte do plástico no planeta se biodegradar. No meio tempo, o plástico que vai parar na água está se quebrando em pequenas partículas, que criaturas como os plânctons confundem com comida. Plâncton é o bloco essencial de construção de toda a cadeia alimentar. Hoje, em várias partes do mundo, partículas de plástico superam o número de plânctons encontrado perto da superfície dos oceanos.

O Mundo Sem Nós é um dos textos seminais da minha vida. Ele mudou o meu modo de olhar para o mundo, me fez vê-lo de maneira parecida com a qual eu acredito que o fotógrafo Andreas Gursky o vê, como uma vasta máquina de pessoas e bens. Eu passei muito tempo, em 2008, me preocupando com microplásticos – grânulos de 2 milímetros que são derretidos para fazer plástico de todas as maneiras – e pregando para as pessoas sobre compostagem. E também porque esse foi o ano que comecei no Style.com, eu me encontrei tendo um enorme interesse na cadeia de produção de moda.

“Cadeia de produção.” A frase é tão vaga, tão neutra, que parece ter sido cunhada com a intenção de fazer os olhos das pessoas revirarem quando elas trombam com ela. Cadeia de produção é o back end de qualquer negócio que vende bens – a “cadeia” que liga a fonte de componentes, as fábricas onde as peças são transformadas em material comprável, e a rede de distribuição pelo qual esse material é entregue aos consumidores (ou às lojas que eles freqüentam). Antigamente, a cadeia de produção da moda era bem direta: um fazendeiro tosquiava sua ovelha; um tecelão da vila transformava a lã em tecido; o alfaiate comprava o tecido e o transformava em uma batina para um burguês local, ou algo parecido. Eu estou aproximando, mas você entende o ponto. Depois disso, o feudalismo acabou, a Revolução Industrial aconteceu, Henry Ford inventou a linha de produção, a globalização se tornou algo importante. Agora, na era do hipercapitalismo, a cadeia de produção de moda típica é vasta e complexa ao estilo Rude Goldberg. A saber:

“De acordo com a teoria da moda, existe 101 estágios na cadeia de produção, o primeiro sendo ‘designer visita uma feira de tecidos’ e o último, ‘pedido pronto para ser despachado'”, escreve Lucy Siegle em seu livro To Die For, um iniciador útil sobre o assunto. A teoria a qual Siegle se refere, uma que é ensinada em escolas, é na verdade bem abreviada: Ela deixa de fora os passos necessários para produção dos tecidos entre os quais os designers navegam nas feiras tipo Première Vision, sem mencionar a vasta rede de distribuição que entrega as peças nas lojas. Os fazendeiros cultivam, os tecelões tecem, os tintureiros tingem, os cortadores cortam, os costureiros costuram; as peças são empacotadas e colocadas em caixas e carregadas em navios cargo ou atoladas em fretes aéreos; elas chegam em armazéns em todo o mundo e são despachadas novamente, para lojas ou para compradores online. Milhões de pessoas e toneladas de água, produtos químicos, culturas, e petróleo estão envolvidos no processo que transforma a fantasia de um designer em um objeto sensual pendurado em uma arara de loja. Essa é a cadeia de suprimentos e sua totalidade labiríntica é projetada para diminuir o atrito entre a satisfação do desejo do consumidor e a compra. Eu quero aquilo! Clique. Alguns dias depois, um pacote chega à sua porta.

Entende o que eu quero dizer sobre máquina? A cadeia de produção industrial moderna da moda é fascinante, se, como acontece comigo, está em sua natureza ficar fascinada por esse tipo de coisa. Todo o resto das pessoas parece achar o tópico dolorosamente chato. Como Tom McCarthy escreveu sobre o mistério “Project” no centro de seu mais recente romance Satin Island, a cadeia de produção de moda “terá efeitos diretos em você… embora você provavelmente não saiba disso. Não que seja segredo. Coisas como essa não precisam ser. Elas rastejam sob o radar por serem chatas. E complexas.”

Então eu vou tentar tornar isso interessante. Imagine Jennifer Lawrence. Melhor ainda, imagine que você é Jennifer Lawrence, estrela de uma franquia que acontece em uma distopia futura. Nesse mundo, a norma social é você comprar, regularmente, uma determinada peça de vestuário – diversas variações de uma que você já tem. Os meios de subsistência de muitas pessoas dependem de você comprar e recomprar essa peça de vestuário. Depois, um dia, você – heroína em ação – faz uma descoberta. A fábrica onde a peça onipresente da sua sociedade é produzida está despejando tanto material nocivo na atmosfera que o mundo pode acabar se ela não parar. A versão hollywoodiana dessa história contaria com um vilão – um mentor déspota no topo do sistema, que seria descoberto e deposto. Um sistema mais gentil magicamente emergiria, e você começaria seu reinado como a rainha generosa da terra, com um garoto bonito e interessante ao seu lado. Fim.

Agora imagine que a peça de vestuário onipresente no centro dessa ação hollywoodiana é: jeans. Esse é mais ou menos o mundo em que vivemos, nós super-compradores do Ocidente desenvolvido. Nós somos os consumidores finais de um produto – aparentemente inócuo, mas não – que nós compramos e recompramos sem pensar muito. Porque, você sabe, é assim que funciona. É assim que fazemos.

Os impactos da cadeia de produção da moda são vastos. Para efeitos do espaço, eu vou deixar de lado a discussão de seres humanos e animais e se concentrar apenas sobre os custos ambientais. O que é absurdo – certamente os seres humanos e os animais contam como parte do “meio ambiente?” – Mas inevitável. A mente de uma pessoa só pode processar um tanto de informação por vez. Então, para voltarmos ao cenário acima apresentado, considere o denim. Ele é feito de algodão produzido em fazendas espalhadas pelo mundo. O algodão é transportado para lá e para cá entre os oceanos para ser transformado em tecido, costurado e beneficiado. No caminho, o par de jeans convencional é tratado com PFCs, químicos que tornam o material respirável e à prova de manchas, e lavado com detergentes que contêm nonilfenóis, outro composto perigoso.

O processo todo é incrivelmente intensivo em água, da fazenda para cima; e a carga de carbono do transporte do algodão para as usinas e do denim cru para fábricas é astronômico por conta própria. Depois, há o impacto adicional do transporte, de barco ou de comboio ou de jato, de jeans para as lojas. Eles chegam selados em sacos de plástico transparentes, que são prontamente descartados. Pelo menos o algodão decompõe-se; os sacos fazem o seu caminho para aterros sanitários, ou talvez, tomados por um senso de aventura, para a grande mancha de lixo do Pacífico entre a Califórnia e o Havaí. Quantos pares de jeans você possui? Eu acho que eu tenho cerca de uma dúzia de pares, dos quais eu uso talvez quatro.

Um único par de jeans não é uma ameaça ao Planeta Terra. Mas como Siegle fala em seu livro, “um escalonamento de um bilhão e meio de calças jeans e de algodão são costuradas em Bangladesh todo ano”. E isso é só em Bangladesh. E isso é só jeans (e calças de algodão). Virtualmente cada item de moda produzido em massa chega às nossas costas com uma história Bizantina. E na maioria dos casos, é o tamanho da escala empresarial que está fazendo o dano. Nosso desejo insaciável por cashmere barato resulta em uma supercriação de cabras no Gobi, um delicado ecossistema rapidamente sendo despido da vegetação necessária para suportar animais como, bem, cabras. Na Índia, o crómio usado pelos curtumes de couro de baixo custo tem manchado porções do Ganges de azul brilhante, o tornando praticamente desprovido de vida. Ou, para mudar a ação para a Indonésia ou Brasil, poupe um pensamento para um material laborioso conhecido como viscose. A viscose é produzida a partir de polpa de madeira e, graças a onipresença do material na moda, está relacionada à destruição de enormes parcelas de floresta tropical. Lembrete amigável: A floresta tropical é o nosso sumidouro de carbono mais eficaz, absorvendo CO2 e o expelindo de volta na forma de delicioso oxigênio.

Em abril desse ano, a Rainforest Action Network lançou uma nova campanha, Fora de Moda, chamando 15 marcas bem conhecidas para se comprometerem a fazer mudanças em sua cadeia de fornecimento visando melhorar a perda da floresta. Existem outras iniciativas em andamento também: 24 de abril marca o Fashion Revolution Day, em que as pessoas em todo o mundo são convidados a postar selfies com as etiquetas de conteúdo de suas roupas como uma forma de desafiar a indústria da moda para se tornar mais transparente.

Enquanto isso, diversas marcas começaram a dar passos à direção certa. A Levi’s está encabeçando um movimento de tornar o consumo de água na produção de jeans mais eficiente, e a companhia se comprometeu em abolir o uso de PFCs em sua produção até 2016. Enquanto isso, também na linha de frente do denim,Pharrell Williams formou parceria com a G-Star para criar uma linha com tecidos feitos de algodão e plástico reciclado tirado dos oceanos. (Acho que Pharrel tem os mesmos pesadelos que eu tenho). François-Henri Pinault, CEO do grupo Kering, emergiu como um forte líder na sustentabilidade: Ele instituiu reformas para localizar e reduzir desperdício na companhia inteira, e estabeleceu o Laboratório De Inovação De Material, que desenvolve artigos de luxo mais sustentáveis. Entre as marcas de fas-fashion, H&M demostrou um desejo sincero de limpar sua sujeira, lançando uma variedade de iniciativas sob o logo “H&M Conscious” e comprometendo-se a não usar nada além de algodão orgânico ou reciclado em suas roupas até 2020. H&M já é a maior consumidora de algodão orgânico do mundo.

Estes esforços são de certa maneira louváveis. Mas há uma questão maior, que está intrinsecamente relacionada ao tamanho. O problema com a moda, vis-à-vis o meio ambiente, não é com um produto qualquer ou um processo qualquer. Alguns deles são bastante ruins realmente, mas é a escala de produção que de fato importa no final. Uma imensa infra-estrutura foi concebida para apoiar uma cultura de compras em que estamos encorajados a comprar mais, mais, mais. Comprar agora; comprar mais barato; comprar constantemente.

Eu vou poupar você sobre a lição do consumo consciente. Não há dúvidas que você já ouviu sobre isso antes. Ao invés disso, me permita pausar para admitir que eu mesma sou totalmente permeável ao fascínio das compras. Só nessa semana, eu concebi um desejo urgente por uma cropped flare, duas blusas de algodão bordadas da Madewell, e um novo par de Birks. A cropped flare eu comprei de segunda mão, as blusas eu decidi esperar até que eu pudesse me decidir entre uma das duas, e as Birkenstocks eu pulei porque, bem, o par que eu tenho é suficiente. Tudo isso eu mencionei apenas para notar que foi um ato de verdadeira disciplina limitar minhas compras. Todo o processo me deixou mais exausta do que satisfeita. Eu não acho que eu sou a única a ter esse sentimento oco, contemplando o meu curso. E então – por força do hábito, realmente – voltar às lojas para procurar alguma outra coisa que pode preencher o vazio.

O que significa dizer: eu sou parte dessa máquina. Você também. Minha referência ao Jogos Vorazes acima não foi inútil; tenho uma teoria que nosso gosto atual por ficção distópica deriva de um senso de que todos fomos recrutados para um sistema o qual nós particularmente não entendemos e não temos poder significativo para assumí-lo. Eu digo, por onde deveríamos começar? Não há nenhum vilão feroz aqui, apenas uma rede emaranhada de acordos comerciais, como a Parceria Trans-Pacífico agora em fase de negociação, fazendas e fábricas longínquas, e corporações pressionado para entregar maiores lucros, ano sobre ano, para os acionistas. A cadeia de abastecimento de moda é lubrificada pelo petróleo e crédito baratos, e conduzida pelo imperativo capitalista do crescimento. Mesmo designers que preferem não fazer isso são obrigados a ceder e transferir sua produção para o exterior, a fim de entregar coleções mais baratas e de maneira mais rápida para mais e mais lojas. E, assim, a máquina continua grunhindo. Eu imagino que o barulho que ela faz é algo parecido com a música de Rihanna “Bitch Better Have My Money.”

Eu pareço nervosa? Eu estou nervosa. Nós consumidores temos sido “protegidos” das consequências dos nossos hábitos. Eu estou nervosa porque depois o imperativo moral é então jogado de volta para nós: Somos implorados para comprarmos de forma responsável, mesmo que governos e corporações façam acordos geopolíticos com o objetivo de nos fazer comprar mais coisas. Eu não inventei a Zona de Processamento de Exportação. Você inventou?

Eu não estou defendendo a passividade. Como uma amante da moda, eu gostaria de promover a ideia de que ter um senso de estilo é uma maneira de agir: Se você é meticuloso em seu gosto, muito exigente com a forma como as suas roupas são feitas, e curatorial na sua abordagem para montar um guarda-roupa, essa é uma boa defesa contra a tentação de comprar alguma peça qualquer apenas pelo fato de comprar. As pessoas devem levar a moda mais a sério, e não menos.

Mas mesmo tão digno e tão necessário como pode ser afirmar algum rigor de maneira direta e considerar as origens de nossas roupas, as ações que temos de tomar para limpar essa bagunça não são apenas pessoais. Elas são políticas também. Ou, para colocar de outra maneira: Você não simplesmente vota com o seu bolso; você também vota com o seu voto. E você vota com a sua voz, como mais de 100 mil pessoas fizeram quando elas saíram para a marcha People’s Climate March em Nova Iorque em setembro do ano passado. Nós precisamos nos mobilizar para a mudança. Não é impossível. Se o petróleo fosse mais caro, as coisas mudariam. Se as empresas fossem legalmente intimadas a arcar com os custos reais de seus impactos ambientais – limpando rios, replantando florestas, pagando por cuidados médicos em comunidades cuja terra e água foram devastadas, e assim por diante – as coisas mudariam. Se as pessoas exigissem que pactos comerciais como TPP fossem negociados publicamente e firmados para incluir altos padrões em matéria de direitos dos trabalhadores, bem-estar animal e sustentabilidade, as coisas mudariam. Mas um movimento de massa é necessário para desafiar o status quo e criar um sistema mais justo em seu lugar. A única outra opção é a revolução, que é apenas a política por outros meios. Parafraseando William Blake: Você deve criar um sistema, ou ser escravizado pelo sistema de outro homem. O que Katniss Everdeen faria?

Texto por: Maya Singer.



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