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Só o político pode salvar o economista

Veículo: Valor

Seção: Economia

Temos insistido que a economia é uma disciplina na qual se enfrentam sempre os mesmos problemas. O que muda são suas soluções, de acordo com a ampliação do entendimento de como funciona o sistema econômico; dos avanços da psicologia, que mostra que o homem é um bicho mais complicado do que costumava ser, que no seu processo decisório combina, em graus diferentes, a "razão" e a "emoção"; de como se manejam os novos instrumentos analíticos de que se dispõe para simplificar (e entender) essas decisões e de como se aproveita o ensinamento da história, que vai acumulando os efeitos das soluções fracassadas.

O reconhecimento da complexidade que domina a interação dos indivíduos, imersos numa sociedade na qual emerge uma certa ordem "espontânea" e que pode produzir "emergências" (a quebra de todo "equilíbrio"), está impondo um comportamento cada vez mais humilde ao economista. Este torna­se perigoso quando é portador de uma "ciência", ou de uma "ideologia", que recusa os resultados da organização social a que chegamos pela seleção histórica e que combina, de fato, ainda que imperfeitamente, uma certa liberdade de iniciativa, uma crescente igualdade e uma relativa eficiência produtiva, que levaram 20 ou 30 nações do mundo ao nível de bem­estar de que dispõem hoje.

Acredita que o homem e a sociedade, na qual ele vive, responderão mansamente aos seus desígnios (o que a história demonstra que nem o poder "absoluto" é capaz de produzir). Isso deveria nos ensinar duas coisas:

1) que o caminho para a sociedade civilizada é conhecido. É longo e pedregoso. Percorrê­lo exige paciência e persistência. Raramente admite atalhos que não sejam adaptar soluções que os que estão na frente conseguiram com sucesso; e

2) que é preciso respeitar a história, a geografia, as restrições físicas e os conhecimentos acumulados pela disciplina econômica ao longo de séculos, além de prestar atenção às novas respostas (sugeridas pelo esforço teórico) às velhas questões que nos acompanham. Talvez seja hora de deixar de lado a reeleição O problema é que a construção de uma sociedade "civilizada" (precariamente definida acima) não é um problema econômico: os economistas de todas as "escolas" (neoliberais, keynesianas, kaleckianos, marxianos e "tutti quanti"), se vivem no Brasil e não no país da Alice, conhecem as variantes do caminho. O problema é político: como educar e convencer a sociedade a rejeitar nas urnas a solução que oferece a alegria gratuita: a linha reta declinante sem obstáculos, no qual a força da gravidade (a "ideologia" ou a "demagogia") faz o seu trabalho, mas que a história mostra que, mais dia menos dia, termina no inferno? Como levá­la a escolher o caminho mais virtuoso que exige sacrifício e paciência?

Para escapar da hipótese do "déspota esclarecido", as sociedades hoje desenvolvidas assistiram a uma coevolução da educação (frequentemente ligada à religião: a necessidade de ler a Bíblia) com a invenção do sufrágio cada vez mais universal, que moderou o poder da concentração do capital. Empoderou o trabalhador desamparado (produto da criação do direito à propriedade privada), transformando­o em eleitor, na construção do que hoje chamamos "capitalismo". Este é, apenas, um instante histórico na busca continuada da sociedade civilizada a que o homem aspira. A questão é, portanto, puramente política: como organizar e dar instrumentos de poder à liderança eleita pelo sufrágio universal para que possa implementar os mecanismos de administração relativamente eficientes, compatíveis com mais liberdade, mais igualdade e maior produtividade? A resposta parece ser: eleições livres, em distritos bem definidos e regras de barragem adequadas que permitam uma coalização majoritária estável, que proponha e aprove as soluções que nascem das experiências dos países democráticos bem­sucedidos. Talvez seja hora de deixar de lado a reeleição que, sem qualquer controle social, revelou­se um mal. Seria melhor um parlamentarismo (infelizmente recusado em dois plebiscitos viesados) inteligente, que garanta ao governo a maioria eficaz, ou o leve à dissolução. É muito triste ter que reconhecer que o recente "esforço reformista" do Congresso afastou o Brasil ainda mais de um sistema político minimamente funcional.

Talvez estejamos nos momentos (Jânio e Collor) nos quais emerge o "que se vayan todos", como sugere uma recente pesquisa de opinião. Infelizmente, os dois não souberam aproveitar o acidente que lhes deu a oportunidade de um protagonismo digno de figurarem com admiração na história nacional, mas, mesmo assim, mandaram para a casa todos os profissionais do atraso...

Nossa situação econômica só é um problema sem solução, porque dispomos de uma trágica organização política: 1) um presidencialismo de coalização em que a presidente nem assume o seu protagonismo, nem se coaliza; e 2) um Congresso perdido, ocupado com propostas que, com raras exceções, ignoram o interesse nacional e que insiste em dissipar sua energia num sinistro retrocesso civilizatório. Em 1986, quando fui candidato à Constituinte, publiquei um pequeno livro, "Só o Político Pode Salvar o Economista". Trinta anos depois parece que isso ainda continua verdade...

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA­USP, ex­ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.

Escreve às terças­feiras E­mail: ideias.consult@uol.com.br



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