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Da ética à estética

Veículo: Portugal Têxtil

Seção: Notícias

Numa das extremidades do espectro surgem as potências do luxo, como o grupo Kering, LVMH, Burberry e Hermès, que se iniciam na integração de estratégias de sustentabilidade para a mecânica dos seus negócios e, na outra, um punhado de marcas inovadoras, que fundiu, com sucesso, os valores éticos com um design inteligente.

Mediante as exigências crescentes de uma ampliada transparência e sustentabilidade – anteriormente encaradas como questões técnicas, que envolvem estudos complexos de cadeias de biodiversidade e alimentação – são hoje consideradas atrativas. Os resultados são visíveis em diversos produtos, como nas bolsas da Gucci, trabalhadas em couro curtido, isento de metais-pesados, nos óculos de Warby Parker – por cada par vendido, são doados fundos a parceiros sem fins lucrativos que fornecem cuidados oftalmológicos gratuitos a pessoas necessitadas – e nos impermeáveis reciclados Yulex da marca Patagonia, produzidos a partir de borracha biológica. De igual modo, há uma crescente abertura a novas formas de produção e à constituição de novas parcerias entre empresas, ONGs e universidades.

A moda de luxo é, ainda, frequentemente encarada como um desperdício, irrelevante e indulgente, e o volume de negócios necessário à sobrevivência do sector parece anti-ético face aos princípios da sustentabilidade.

Porém, as empresas mais inteligentes procuram relatar uma história diferente, ampliando a definição de qualidade para incluir métodos ambiental e socialmente positivos de produção, bem como concentrando a sua atenção num design inovador, artesanal e materiais nobres.

Esse malfadado investimento de compra poderá, agora, tornar-se uma boa aquisição, que protege o meio ambiente, ao invés de destruí-lo. Dilys Williams, diretora do Centro de Moda Sustentável da Faculdade de Moda de Londres, afirma que «a sustentabilidade é uma disciplina extremamente complexa. É técnica, matemática e psicológica e está, também, relacionada com a economia. A moda prende-se com a forma como lidamos com o nosso modo de vida atualmente – é uma fotografia do nosso mundo. A moda e a sustentabilidade têm de ser uma boa combinação».

A intenção de criar uma combinação expressiva instigou François-Henri Pinault, CEO do grupo Kering – proprietário da Gucci, Saint Laurent e Bottega Veneta, entre outras marcas – a contratar um diretor de sustentabilidade em 2012. Marie-Claire Daveu, anteriormente membro do Ministério Francês de Ecologia, ocupa o cargo recém-criado há três anos. «A sustentabilidade é a questão mais importante do nosso século», disse Daveu. «O meu papel é fornecer uma perspetiva geral, uma estratégia, uma visão e criar um plano de ação. Se falamos de uma visão, para Pinault trata-se de colocar a sustentabilidade no centro da estratégia de negócios».

Marie-Claire Daveu sabe que não existem soluções rápidas. «Enquanto a sustentabilidade é, sem dúvida, uma oportunidade de negócio, está repleta de desafios e incógnitas», sustenta. «Como tal, é uma viagem – não importa o tamanho do negócio – e isso leva tempo. O que é essencial é atuar e tomar a iniciativa em áreas onde podem ser alcançados resultados positivos. Assim que se começa a observar o negócio através da lente da sustentabilidade, percebemos que os negócios tocam o meio ambiente e lidam com as pessoas e comunidades em todas as etapas das suas complexas cadeias de aprovisionamento. A priorização e o foco são essenciais», explica.

Na primavera de 2012, François-Henri Pinault anunciou um plano de ação com alvos essenciais, com a redução das emissões de dióxido de carbono e a redução do consumo de água a figurarem no topo da agenda. A pegada ambiental é medida a vários níveis, desde a pecuária à produção. Um Laboratório de Inovação de Materiais foi fundado em 2013 e, este ano, assistiu-se à implementação de um sistema de contagem de EP&L (ganhos e perdas ambientais) em todas as marcas.

Daveu e a sua equipa de trabalho deverão converter essa ampla quantidade de dados tangíveis em algo compreensível pelos CEOs que lideram as várias empresas do grupo. «Teremos de ser capazes de identificar pontos fracos e fortes e fazer uma estratégia para investimento e implementação dos métodos mais eficientes», revelou Daveu. «Prende-se com o desenvolvimento de uma linguagem comum à da equipa financeira. Discutir a biodiversidade com um CFO não é fácil. Mas quando falamos em termos monetários, é muito útil», acrescentou.

O grupo Kering é um importante grupo-teste da sustentabilidade em ação devido à sua dimensão e à diversidade das suas marcas. Uma boa prática para a Gucci poderá não fazer sentido para Saint Laurent ou para a Brioni. Devem ser elaborados planos específicos para cada marca. Em 2014, alguns dos avanços alcançados incluíram a introdução de iluminação LED nas lojas Saint Laurent, o uso de lã sustentável na casa Stella McCartney e a já mencionada isenção de metais-pesados pela Gucci.

Estas podem parecer pequenas alterações, mas Marie-Claire Daveu é perentória sobre o poder da mudança, mesmo que seja incremental, e o poder da moda na transformação de mentalidades. «O luxo dita as tendências mas, de forma a mudarmos o paradigma, precisamos de envolver mais pessoas», acredita. A partilha de informação, insiste Daveu, é essencial, mesmo que contrarie as presunções dos grandes grupos de luxo.

O grupo LVMH executa o programa LIFE (Indicadores do LVMH para o Meio Ambiente) em todos os seus cinco grupos de negócios: vinhos e bebidas espirituosas, moda e artigos de couro, perfumes e cosméticos, relógios e joias e retalho seletivo. A iniciativa, iniciada em 2011, identifica as áreas-chave, incluindo a conceção ecológica, matérias-primas e cadeias de aprovisionamento, rastreabilidade dos materiais, relações com fornecedores, redução de gases de efeito estufa, longevidade do produto e informações sobre os clientes. No ano anterior, o programa, supervisionado por Sylvie Bénard, diretora de meio ambiente da LVMH, foi incorporado na estratégia de todas as casas do grupo. Bernard Arnault, CEO do grupo, refere-se ao valor da sustentabilidade como um «capital intangível» e «fundamental para o sucesso futuro».

Contudo, existe uma ampla reticência à sustentabilidade. Várias empresas estão a implementar iniciativas de sustentabilidade, mas encobrem as suas especificidades sob a capa da responsabilidade social, optando por não as partilhar publicamente. A Chanel pode não vangloriar-se sobre as suas iniciativas, por exemplo, mas quando questionada sobre elas, Bruno Pavlovsky, presidente de moda da casa, aponta que «Exemplos das nossas prioridades incluem a melhoria contínua do nosso controlo face à cadeia de aprovisionamento, combinando todas as divisões; respeito pela biodiversidade; utilização de matérias-primas naturais; comércio que respeita as populações locais; redução continuada da nossa pegada ambiental; preservação e desenvolvimento da experiência dos nossos ofícios; apoio aos fornecedores e parceiros na adoção de melhores práticas; e o bem-estar das nossas equipas».

Na segunda parte do artigo serão abordadas as sensibilidades latentes à opção de transmitir vocalmente as iniciativas tomadas no âmbito da ampliação da sustentabilidade e responsabilidade ambiental junto dos consumidores e entidades da indústria.
                   PARTE 2

A ética e a sustentabilidade são, atualmente, encaradas como um ativo dentro das organizações, capaz de potenciar o valor e imagem das marcas de luxo num mercado negativamente notabilizado pelo desperdício.  

Porém, é também um fator de divisão no seio do sector e uma temática que desperta suscetibilidades entre as entidades e seguidores da indústria de luxo, conduzindo à tomada de posições polarizantes (ver Da ética à estética - Parte 1).

O consenso entre as marcas de luxo de topo parece ser de que os produtos não necessitam de etiquetas, mas sim que podemos supor que a sustentabilidade está agora integrada numa garantia mais ampla de qualidade. A realidade é, eventualmente, mais complexa. Os programas de sustentabilidade são um processo contínuo e alguns decisores do sector de bens de luxo admitem que a sustentabilidade não é um problema para muitos dos seus clientes atuais, pelo que as marcas não querem impô-la. No entanto, antecipam que a próxima geração de consumidores estará mais sensibilizada para as questões da sustentabilidade.

Para alguns, contudo, a sustentabilidade deve ser explicada e transparente. O designer belga Bruno Pieters lançou o website Honest By em 2012. Tendo em vista a transparência sobre a pegada subjacente aos seus projetos e aos de outras seis marcas semelhantes, o site de comércio eletrónico disponibiliza detalhes precisos sobre a produção de cada peça e até mesmo sobre a redução dos custos, pegada de carbono e mark-up. O objetivo é tornar os dados mais convincentes. No ano passado, Pieters fundou a “Future Scholarship Fashion Designer” – um prémio de 10.000 euros para jovens designers que desejam aprender a trabalhar de forma transparente e sustentável.

Outros sugerem a criação de certificados que  contemplem toda a indústria. A controvérsia conduziu Diana Verde Nieto, fundadora da consultora de sustentabilidade Clownfish, a estabelecer o programa de adesão Positive Luxury e a criar o Trust Mark Butterfly. «Há uma pressão contínua por parte dos consumidores para que as marcas sejam mais abertas sobre as suas práticas, pelo que ajudamos as marcas a comunicarem o seu compromisso de produzir o melhor em qualidade, design, serviços, sustentabilidade», afirma Nieto. E insiste que as marcas estão, cada vez mais, à procura de meios de provar e lucrar com as suas credenciais de sustentabilidade.

«Com uma crescente procura por parte de marcas de luxo que pretendem obter um retorno sobre o investimento nas suas comunicações de sustentabilidade, mais e mais pessoas procuram ferramentas, como esta, para uso nas suas estratégias de marketing digital», acrescenta Nieto. E a lista de titulares da Butterfly Trust Mark estende-se, agora, à Acne e Veuve Clicquot.

No entanto, existe um número desconcertante de atribuidores de credenciais sustentáveis . Com sede nos EUA, a B Lab., por exemplo, permite que as empresas solicitem o estatuto de “Corporação B”. Mais de 1.200 empresas, até ao momento, passaram nos testes da B Lab., que avaliam a responsabilidade social, incluindo Warby Parker, Patagonia e Etsy.

A sustentabilidade está, também, a tornar-se um problema de recrutamento, num momento em que os jovens designers procuram ofertas que abordem a sustentabilidade e, em seguida, selecionam empresas que valorizam a temática. «O nosso ponto de partida é o projeto: quais são as implicações do projeto e quais são as suas oportunidades», explica Dilys Williams, cujo departamento do London College of Fashion oferece um mestrado no assunto, além de ser um centro de pesquisa e um órgão consultivo para os negócios.

O centro está atualmente a colaborar numa iniciativa apoiada pela ONU, intitulada “Design para a Biodiversidade”, integrada na Plataforma de Sourcing de Ecossistemas Responsável. Este é um projeto de pesquisa, com a duração de cinco anos, sobre o impacto do aprovisionamennto das marcas de luxo, como Armani e Hermès, na biodiversidade. Os resultados deverão traduzir-se num conjunto compartilhável de ferramentas a usar por designers e marcas na avaliação do impacto do cultivo e sourcing.

O centro cooperou igualmente com o Nike Lab no desenvolvimento do aplicativo gratuito Making for Making. «O projeto debruçou-se sobre a humanização dos dados e cooperação com a marca no desenvolvimento de uma aplicação que pode determinar o impacto relativo de produzir algum produto, quer seja em seda, algodão ou lã – incentivando os designers a serem mais exploratórios», esclarece Williams.

Naturalmente, para as novas marcas, existe a possibilidade de incluírem a sustentabilidade desde o início. Em Nova Iorque, a marca de moda Maiyet está a conquistar um nicho no sector de luxo artesanal. A empresa foi criada em 2010 por Kristy Caylor, ex-diretora de merchandising de Acessórios e Produto da Gap, por Paul van Zyl, um advogado sul-africano de direitos humanos, e pelo empresário Daniel Lubetzky. A missão contemplava incluir artesãos de todo o mundo e criar uma marca de luxo viável e moderna em torno deles. Um negócio de exportação saudável e de orientação que, por sua vez, ajude a sustentar o emprego em áreas onde a mudança para a produção em massa está a contribuir para a extinção das práticas artesanais. Tudo isso seria irrelevante se o produto não fosse desejável. Mas é.

«Lançámos a coleção em quatro categorias – pronto-a-vestir feminino, malas, sapatos e joias», revela Kirsty Caylor. «A filosofia subjacente à marca é o facto de pretendermos criar oportunidades de emprego sustentáveis nos lugares que mais necessitam – à medida que o nosso negócio cresce, também crescem essas oportunidades», explica.

De forma a localizar e auxiliar na execução dessas parcerias, a Maiyet uniu-se à Nest, agência sem fins lucrativos que fomenta o equilíbrio entre marcas e competências. A Maiyet percorre, agora, a passarela parisiense e inaugurou uma flagship em Nova Iorque, em 2013. «Numa economia global, com consumidores altamente qualificados, cada país e cada empresa terá de, cada vez mais, produzir produtos de alta qualidade, em condições de trabalho aceitáveis», sustenta van Zyl, que continua, também, a ensinar direitos humanos na Universidade de Nova Iorque. «Eu não acredito que seja, ou deva ser, uma troca entre qualidade e práticas laborais justas», acrescenta.

Os consumidores altamente educados estão a aumentar rapidamente em número e encaram a sustentabilidade como uma prioridade. As empresas inteligentes estão a inovar como mecanismo de sobrevivência e prosperidade. A geração de consumidores mais jovem espera cada vez mais das marcas de luxo e estas orientam-se, progressivamente, em torno deste grupo de consumidores, respondendo à necessidade de apelar a este segmento, refere Lucie Greene, diretora mundial da JWTIntelligence. «Eles esperam híper-transparência, um comportamento ético, sustentabilidade e valores por parte das marcas que consomem. As marcas de luxo daqui em diante, terão de se ajustar a isso. Considere o surgimento da Warby Parker e da Everlane, que combinam luxo com responsabilidade e sourcing transparente», aponta.

O mais importante para os consumidores mais exigentes é a origem, bem como a boa aparência. Stella McCartney lidera a iniciativa no requisito glamour. Lançou, recentemente, uma coleção Green Carpet em colaboração com a iniciativa Green Carpet Chalenge, criada por Livia Firth, da consultora de marcas Eco-Age.

A coleção cápsula de 13 vestidos utiliza materiais reciclados e sustentáveis certificados. «Esta coleção é um grande passo para o que sempre tive como objetivo alcançar», reconhece McCartney, «desafiando os limites e estereótipos de forma sustentável, provando que é possível criar e entregar peças de vestuário de gala bonitas e luxuosas, causando pouco ou nenhum dano ao ambiente», destaca.

Esta mudança rumo à sustentabilidade é gradual – a implementação da estratégia e pesquisa de novos materiais e processos necessita de tempo e investimento – mas, para Marie-Claire Daveu, diretora de sustentabilidade do grupo Kering, é uma obrigação. No campo da empregabilidade, o talento inteligente gravita rumo a empresas com programas de sustentabilidade totalmente integrados. Ao nível do consumidor, exige-se qualidade em todos os sentidos da palavra. «No sector do luxo todas as marca têm a obrigação de integrar práticas sustentáveis se pretendem continuar - a escassez é uma realidade», afirma Daveu. «Não existe escolha. Esta não é uma opção, é algo essencial, não só pelos valores éticos, mas de forma a continuar a fazer negócios», conclui.



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