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Sociedade não está pronta para caber no Orçamento, diz gestor

Veículo: Valor

Seção: Economia

Há dois anos, quando o déficit nominal do setor público estava ao redor de 3% do Produto Interno Bruto (PIB), o economista­chefe da Verde Asset Management, Daniel Leichsenring, surpreendia ao indicar que esse déficit caminhava para os 6%. Hoje, diante de um déficit de 8,12% em 12 meses até junho, Leichsenring surpreende novamente: "A conclusão é que a gente esteve excessivamente otimista nos últimos anos porque a realidade era muito pior", diz ele, meio brincando, meio a sério.

A sociedade, diz Leichsenring, optou por um Estado de bem­estar social a partir de um nível de desenvolvimento muito baixo e hoje começa a colher frutos amargos. Ainda assim, não está preparada para reduzir direitos e fazer com que o Estado volte a caber dentro do Orçamento. Mas que sociedade estaria? "Nenhuma", reconhece o economista de 37 anos, há 11 com Luis Stuhlberger, um dos mais reconhecidos gestores de recursos do país. Mas o cenário é do tipo que acaba levando o país a aceitar medidas mais duras, diz.

O impeachment, no entanto, não figura no rol dessas medidas. "Francamente não vejo motivos até hoje para caminhar para o impedimento nas duas teses, do TSE e do TCU". Enquanto a primeira parece "pouquíssimo provável", a do TCU seria usar uma filigrana técnica.

O fim de tanto "horror" pode ser abreviado por uma sociedade que alcançou inédito padrão de vida nos últimos anos e não quer voltar para trás, reconhece Leichsenring. "Fazer retroceder tanto e em um intervalo tão curto pode fazer a gente abreviar muito esse período de sofrimento se as pessoas de fato perceberem que é preciso mudar. Pode ser por aí", diz. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Qual era a projeção para a meta antes da mudança?

Daniel Leichsenring: Antes da mudança, num cenário róseo, a gente ia chegar a um superávit de 0,4% do PIB. Mesmo assim contando com um monte de receita extraordinária. Onde dá para cortar? Onde estamos vendo cortes. Se você dividir os gastos públicos entre investimentos e todo o resto, o investimento cai 37%, todo o resto está subindo perto de 2%. Mas é preciso entender que no primeiro ano se consegue cortar investimentos. No ano que vem não tem mais investimento para cortar, então o ajuste fiscal vai ficar dependente exclusivamente de receitas extraordinárias. O problema todo é que a gente vinha mantendo as aparências do superávit primário até o ano passado com base em receitas extraordinárias e outras medidas, como as pedaladas fiscais, que vinham camuflando uma realidade que era muito mais difícil.

Valor: É o tipo de realidade que alcançaríamos de qualquer forma?

Leichsenring: De qualquer forma. Naturalmente, se não tivesse havido a inflexão de política econômica seria muito mais dramático do que a gente está vendo.

Valor: As medidas anticíclicas pioraram o cenário?

Leichsenring: Vamos deixar claro que politica anticíclica foi o nome usado para dar um amparo moral a medidas que eram absolutamente irresponsáveis do ponto de vista fiscal. Sem olhar o precedente histórico, a gente fez exatamente as mesmas medidas dos anos 1970 e que, em última instância, deram nas duas décadas perdidas, de meados de 1970 até meados de 1990, quando se fez o Plano Real: todo o programa de substituição de importação, fechamento do país, cortes de impostos seletivos para setores específicos, crédito público subsidiado, a indústria naval. Tudo que desembocou numa piora muito grande dos índices de produtividade da economia. Porque eu não acho que as coisas melhoram do ponto de vista do crescimento? Por que essas medidas todas permanecem. A gente parou de adicionar coisas. Mas o que existia permanece igual.

Valor: O quanto o déficit está amarrado pelo que já existia na Constituição de 1988 e quanto foi colocado depois?

Leichsenring: De 1991, que é até quando a gente consegue os dados, até 2014, o gasto público cresceu algo perto de dez pontos percentuais do PIB ­ gasto primário só da União, sem contar Estados e municípios. Dá quase 0,4% do PIB ao ano por 25 anos. No último mandato houve uma aceleração deste gasto, que cresceu, na média, anualmente, quase o dobro do que havia crescido na média dos outros mandatos. Mas não há dúvida de que o problema estrutural existe desde o governo Sarney. A nossa avaliação mais pessimista de Brasil vem de dois problemas estruturais difíceis de lidar: o fiscal e a baixa capacidade de crescimento da economia, que é o problema original. Quando se olha de três pontos de vista ­ estoque de capital, crescimento populacional e produtividade ­ não dá pra ter otimismo com relação ao crescimento estrutural da economia.

Valor: Mas em 2009, 2010, o mercado previa produtos potenciais acima de 3% ou 4%...

Leichsenring: A gente efetivamente teve anos de crescimento muito fortes entre 2003 e 2010. Foi um momento cíclico fantástico, com uma ociosidade muito grande e partíamos de um câmbio absurdamente desvalorizado por qualquer critério. O câmbio hoje está ao redor de R$ 3,40. Em outubro de 2002, chegou a quase R$ 4. Corrigido pela inflação dá quase R$ 7. Com o câmbio a R$ 7 um monte de atividade parece atrativa do ponto de vista de exportação. A gente mesmo chegou a ficar mais otimista naquela época. Mas o fato é que a Constituição prometeu demais para todo mundo. No fundo, é um problema de natureza política porque é preciso ter muita capacidade de articulação para aprovar reformas que, em última instância, significam a retirada de um pedaço do Estado do bem­estar social.

Valor: Nenhuma medida foi positiva, nem correções do mínimo?

Leichsenring: O salário mínimo tem um benefício e um grande malefício. O benefício é que ele aumenta a renda das pessoas que ganham relativamente menos. O malefício é o custo. Eu preferia políticas mais focadas nas pessoas mais pobres de verdade. Por exemplo, o Bolsa Família é, de longe, o melhor programa que a gente tem. Que consegue identificar as camadas mais vulneráveis da sociedade e trazer o mínimo de conforto material para a pessoa sobreviver. E o custo é infinitamente menor do que o de aumentar o mínimo.

Valor: Dessa forma, o problema é mais político do que econômico?

Leichsenring: A sociedade reiteradamente escolheu esse caminho de um Estado do bem­estar social gigantesco. No fundo, a classe política reage a isso e tenta cavar espaço no Orçamento para aumentar muito mais o que ela percebe que é uma demanda da sociedade. É um problema político na essência. "Não vejo motivos até hoje para caminhar para o impedimento [da presidente] nas duas teses, do TCU e do TSE"

Valor: Um modelo europeu que pode acabar com um desfecho também europeu?

Leichsenring: Se acabasse com um desfecho europeu alemão, em que todo mundo fosse rico, ótimo. Infelizmente a gente vai acabar com um desfecho europeu muito mais dramático. Mesmo a Grécia, depois de ter tido uma queda brutal do PIB, ainda tem uma renda per capita que é quase o dobro da brasileira. Escolhemos ter um Estado de bem­estar social, mas a partir de um nível de desenvolvimento muito baixo. Teria sido mais benéfico no longo prazo ter investido mais, com uma carga tributária menor. Com uma facilidade de fazer negócios mais comparável a países mais de primeira linha.

Valor: O que esperar para o PIB?

Leichsenring: Queda ao redor de 2,2% para este ano e, para o ano que vem, queda mais próxima de 0,3% ou 0,4%. A gente sempre fez uma analogia: a diferença entre um horror sem fim e um fim horroroso. Acho que a gente está meio num trem fantasma e é um horror sem fim. O problema todo é que se em 2017 se pudesse vislumbrar crescimento de 3%, depois estabilizando em 2% ou algo assim, seria menos preocupante. Mas a gente não consegue vislumbrar retomada do crescimento sustentável.

Valor: E se tivesse ganhado outro candidato, mudaria algo?

Leichsenring: Será que a sociedade e a classe política como um todo estão preparadas para fazer um monte de reformas que são vistas como liberais, de reduzir direitos das pessoas e fazer com que o Estado caiba dentro do Orçamento? Eu não vejo que a sociedade esteja preparada ou demandando ativamente esse tipo de solução.

Valor: Mas qual sociedade demandaria isso?

Leichsenring: Nenhuma. Por isso que eu vejo analogia com os anos 1980. Foram duas décadas de catástrofe econômica para se criar um ambiente político no qual foi possível o aparecimento de uma pessoa como o Fernando Henrique, que trouxe o Brasil para uma agenda liberal à época. Foi uma agenda duríssima que ele só conseguiu fazer porque foi uma catástrofe a economia nos 20 anos antes. A agenda foi aceita porque parecia ser a única capaz de resolver grande parte dos problemas. Hoje eu não sinto do Congresso e da sociedade nenhum sentido de urgência em adotar um viés mais liberal de política econômica. Para virar a solução que a sociedade quer, a gente precisa de muito mais sofrimento econômico. Uma eleição nova, em que ganhe um candidato cujas bases sejam exatamente essas ajuda muito.

Valor: O sr. vê eleições acontecendo prematuramente?

Leichsenring: Não. Francamente não vejo motivos até hoje para caminhar para o impedimento nas duas teses, do TSE e do TCU. A do TSE me parece pouquíssimo provável e a do TCU parece usar uma filigrana técnica. Não sou cientista político, é um tema delicadíssimo. Mas acho que a presidente tem muita capacidade de reação política para conter vários danos. Devemos ir até o final no governo dela mesmo, meio enfraquecido politicamente, sem capacidade de determinar a agenda do Congresso.

Valor: Onde podemos avançar?

Leichsenring: A reforma do ICMS e do PIS/Cofins seriam avanços notáveis. Mas difícil avançar porque, no fundo, ninguém quer perder arrecadação. E no momento em que todo mundo já está perdendo arrecadação porque a economia está um fiasco é difícil avançar. Temos seguido a arrecadação dos Estados e ela está muito ruim.

Valor: Mas eles fizeram superávit na primeira metade do ano...

Leichsenring: A gente aqui faz acompanhamento na maior parte dos Estados no conceito acima da linha, que é um negócio mais difícil de fazer porque tem que entrar em todos os sites das secretarias de Fazenda e as informações não são tão uniformes. Mas a nossa avaliação no conceito acima da linha para Estados e municípios é muito ruim. O que acontece usualmente quando se tem mudança de governo é que a gestão do caixa fica diferente. O Estado para de pagar algumas coisas, começa a reavaliar seus gastos e isso tem um efeito sobre o endividamento, diminuindo­o no curto prazo. Mas não significa que o ente federativo não tenha que, em última instância, fazer os pagamentos. Acho que a União é um bom indicador sobre o que esperar para os Estados e municípios.

Valor: Será possível cumprir o primário consolidado no ano?

Leichsenring: Difícil, infelizmente o abatimento vai ter que ser usado. Dado o tamanho do gasto, é preciso uma alta da arrecadação de quase 5% em termos reais no segundo semestre do ano para chegar à meta de 0,15%. Sendo que a receita líquida da União está caindo algo como 3,5% no primeiro semestre. Não me parece factível. E é bom lembrar que no ano passado tivemos um monte de receita não recorrente, como o Refis com R$ 25 bilhões. É com isso que eles estão contando. Mas a gente precisa disso e muito mais para chegar no 0,15%. Mas se eu acho difícil 2015, acho muito mais difícil 2016. Nessa dinâmica, se você ficar parado e não fizer nada, o déficit sobe. E no ano que vem já não tem mais gasto para cortar. Vamos precisar de um tiro de canhão de imposto por aí.

Valor: Teremos novos impostos?

Leichsenring: A questão é que não dá para ficar sem. Se não aumentar imposto, o déficit público explode. Esse é o drama das contas públicas hoje.

Valor: Há dois anos o sr. disse que o déficit nominal ia a 6% e hoje ele está em 8%. Para onde ele vai daqui a dois anos?

Leichsenring: Esperamos déficit nominal acima de 7% neste ano e muito provavelmente no mesmo patamar no ano que vem. Fora que o déficit nominal tem uma questão quando se olha o pagamento de juros, absurdamente alto.

Valor: A taxa de juro em 14,25% está no nível em que deveria?

Leichsenring: Subir mais os juros para fazer com que a demanda contraia ainda mais tem o benefício de dar mais reputação ao BC, mas adiciona muito pouco ao combate à inflação ao longo de dois anos. A Selic de 14,25% é alta o suficiente para fazer a inflação recuar ao longo do tempo, mas tem que perseverar. A gente faz uma apresentação anual para clientes e, no ano passado, a conclusão foi que a gente esteve excessivamente otimista nos últimos anos porque a realidade era muito pior.

Valor: Qual a expectativa de vocês para o IPCA?

Leichsenring: Alta de 9,3% para este ano e no ano que vem estamos perto de 5,8%. Ainda um pouco acima do centro da meta. "Vale a pena, do ponto de vista do custo para a sociedade, chegar no centro da meta em horizonte tão reduzido?"

Valor: Quando alcançaremos o centro da meta?

Leichsenring: Vale a pena do ponto de vista de qual é o custo que tem que impor à sociedade para chegar no centro da meta num horizonte tão reduzido? Pessoalmente, acho que não. Há condições de navegar para perto da meta em 2017, não é o cenário que a gente atualmente trabalha, mas há condições. Estamos com 4,8% para 2017, mas minha projeção ainda é muito primitiva. Como fazer uma projeção de inflação para daqui a dois anos sabendo que há um trem fantasma fiscal correndo?

Valor: O processo recessivo atual vai ser mais intenso e mais rápido?

Leichsenring: De certa maneira, sim. A enorme vantagem em relação aos anos 1980 é que a situação do balanço externo é muito mais favorável. Hoje há reservas num nível muito alto. É fabuloso de bom. A grande desvantagem é a carga tributária de 37,5% do PIB com esse fiscal. Boa parte da resposta de política econômica adotada ao longo dos anos 1980 foi aumentar a carga tributária. Não que não haja mais capacidade de aumentar imposto. Sempre tem. A dificuldade é que diante desse cenário seria preciso aumentar imposto todos os anos em magnitude muito grande para cobrir uma trajetória predeterminada de gasto público calcada na Constituição.

Valor: E o resto do mundo?

Leichsenring: O FED vai subir juros, mas dificilmente vai subir tresloucadamente como subiu nos anos 1980. Mas sobe este ano, em setembro. As condições no mundo ainda vão permanecer muito tranquilas do ponto de vista de liquidez. Isso atrapalha e ajuda. Atrapalha porque tira o senso de urgência de resolver os problemas. Dá um pouco mais de complacência.

Valor: E o que o sr. acha da ideia de vender parte das reservas?

Leichsenring: Eu respeito, mas não concordo. Não deveria se tocar em reservas. O motivo pelo qual se tem esse volume de reservas é justamente não usar.

Valor: O país vai perder o grau de investimento neste ano?

Leichsenring: É possível, mas menos provável. É algo mais para virada do ano ou começo do ano que vem. Mas quando se olha algumas medidas de risco, o Brasil já está bem abaixo do investment grade. Então, do ponto de vista estrito de curtíssimo prazo, o impacto da perda do investment grade é limitado. Por outro lado, o impacto de mais longo prazo é bastante significativo, no sentido de que o financiamento de todas as empresas no Brasil vai ficar bem mais caro. Num ambiente em que a gente já tem um custo de capital muito alto. Mas não acho que todos os fundos soberanos vão apertar o botão vermelho e falar 'vende tudo porque eu não consigo mais ficar com o Brasil'. Mas naturalmente é um negócio que pode ser pouco negativo, médio negativo ou muito negativo. Ele não vai ser de maneira nenhuma positivo. Então, é uma força adicional a empurrar o crescimento um pouco mais para baixo.

Valor: E o câmbio?

Leichsenring: Até pouco tempo atrás, a gente trabalhava com o câmbio a R$ 3,25 no fim deste ano e R$ 3,50 no ano que vem e revisou isso para R$ 3,50 e R$ 3,75. O melhor teria sido deixar o câmbio caminhar mais em 2015 e sofrer todas as consequências ainda em 2015, que é um ano perdido para todos os efeitos, e tentar colher um pouco dos benefícios ao longo do tempo. Óbvio que uma estratégia mais agressiva no câmbio traria problemas, mais especificamente para a Petrobras, pela alavancagem da empresa. Mas do ponto de vista de economia doméstica agregada faria muito mais sentido. Ainda há bons meses pela frente para que isso aconteça.

Valor: Qual o PIB potencial hoje?

Leichsenring: Infelizmente o potencial é em torno de 1%, se não for pior. Em 2017 podemos ter crescimento acima de 1%? Tendo contraído 2,5% em dois anos seria frustrante não conseguir nem isso. Eu vi um gráfico recentemente que pega oito anos de crescimento ­ dois mandatos presidenciais na estrutura atual. Na média de oito anos desde o início da série histórica, que vem de 1901, o crescimento em oito anos em 2018 vai ser o pior da série histórica. Nunca antes na história do país teremos crescimento médio tão baixo por um período tão prolongado. Mas acho que algo que pode fazer as coisas tomarem um final muito mais rápido do que no passado é que, de fato, a sociedade passou um bom período com um padrão de vida que nunca teve e é difícil demais retroceder. Fazer retroceder tanto em um intervalo tão curto pode fazer a gente abreviar muito esse período de sofrimento se as pessoas de fato perceberem que é preciso mudar. Pode ser por aí. O sentimento vai ser de crise mais aguda e talvez a gente consiga sair dessa enrascada mais rápido.



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