Notícias
Despesa obrigatória já amarra 89% da receita
Veículo: Valor
Seção: Economia
Em pouco mais de dez anos, o governo perdeu metade do pouco espaço que tinha para contingenciar gastos em anos de ajuste. No ano passado, 89% da receita corrente líquida da União estava comprometida com despesas obrigatórias, uma alta de 12 pontos percentuais em relação a 2004. Naquele ano, o governo gastou 77% da receita com esse conjunto de despesas, que envolve abono e segurodesemprego, Loas, Bolsa Família, Previdência, saúde, educação e folha de pagamentos.
Para especialistas em contas públicas, essa lista de despesas, que ocupa espaço cada vez maior no Orçamento, descreve o nó da crise fiscal do país e impede, junto com o menor crescimento da receita, que o ajuste proposto pela equipe dos ministros Joaquim Levy, da Fazenda, e Nelson Barbosa, do Planejamento, funcione como funcionaram os ajustes de 1999 e 2003. O problema já não se resume a "endireitar" as contas do país depois de um período fora do rumo. Muito mais do que um ajuste de um ou dois anos, lidar com a estrutura cada vez mais engessada da despesa exige reformas estruturais, reflexão sobre gastos prioritários e um debate mais amplo sobre o tamanho do Estado que a sociedade quer e como pagar por ele.
Além de obrigatórias, boa parte dessas despesas tem crescimento relevante contratado para os próximos anos seja por causa do aumento do salário mínimo, do número de beneficiários ou da vinculação ao desempenho da receita , o que exigirá aumentos consecutivos da carga tributária, que cresceu consideravelmente nos últimos anos, caso nada seja feito para alterar essa dinâmica.
E sem resolvêla, dizem, o país não voltará a crescer. "Esses são os grandes grupos que travam a despesa e o problema secundário é que, quando a economia cresce, esses gastos aumentam em linha com o PIB, mas quando a economia desacelera, não dá para cortar a despesa", diz Marcos Mendes, consultor legislativo do Senado e autor dos cálculos acima. Ou seja, além de rígido, o Orçamento é também muito procíclico, o que não é problema apenas do governo federal.
Nos Estados, calcula Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, de cada R$ 100 recebidos de Imposto sobre Circulação sobre Mercadorias e Serviços (ICMS), apenas R$ 37 não estão com destino prédefinido. Mendes dá como exemplo o gasto com educação, que passou de 4% do PIB em 2004 para 9,3% do PIB no ano passado. O artigo 212 da Constituição estabelece que a União deve aplicar, no mínimo, 18% de sua receita de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino. Nos Estados e municípios, esse porcentual sobe para 25%. "Então, quando a receita cresce, o gasto obrigatoriamente deve aumentar. Mas e quando cai? Não dá para desmontar universidades, deixar de pagar professores. Isso aumenta a rigidez do Orçamento." Appy classifica a rigidez em três blocos de despesas. Em um grupo estão benefícios pagos de acordo com regras definidas de acesso, como Previdência, abono salarial, segurodesemprego, Bolsa Família e Loas. Esse gasto cresce porque as pessoas têm direito ao benefício e por causa das regras de correção, como a do salário mínimo. Outro grupo são as despesas vinculadas, especialmente educação e saúde.
O terceiro grupo é a despesa de pessoal, pois no setor público não é permitido demitir nem reduzir salário nominal. "Na prática, a rigidez é até maior que os 89% da receita [das contas de Mendes], porque existem outros tributos, como os incidentes sobre o présal, que também estão carimbados, e despesas que não podem ser cortadas, como gastos de manutenção, com água, luz etc.". Mansueto Almeida, especialista em contas públicas, afirma que outra conta, a de subsídios, reduziu ainda mais a margem de manobra do governo para os próximos anos.
Esse gasto, que era de 0,3% do PIB até 2010, subiu para 1% do PIB no ano passado, com a intensificação das políticas de concessão de crédito com equalização de juros por parte do Tesouro. Essa conta, diz, mal começou a ser paga, já que apenas com o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) ainda há cerca de R$ 26 bilhões a serem quitados nos próximos anos. Sem mudanças de regras, diz Mansueto, nem mesmo acelerar o crescimento, que poderia elevar a arrecadação, é suficiente. "Mesmo que a gente cresça mais, metade do gasto está associado a regras que o vinculam ao aumento do PIB. A despesa sobe junto", diz.
Nos últimos 20 anos, diz, o gasto primário do governo central subiu nove pontos percentuais. No artigo "O ajuste inevitável", publicado pela "Folha de S. Paulo" e assinado por Mansueto, Marcos Lisboa, do Insper, e Samuel Pessôa, do Ibre, os economistas calculam que entre a soma dos aumentos de despesa previstos com previdência, saúde e educação, o gasto vai aumentar 0,4 ponto do PIB ao ano até 2030. "O aumento previsto até 2030 requer aprovação de nova CPMF a cada governo para fechar as contas". Como a carga tributária já é de 35% do PIB, elevações de impostos reduzem o potencial de expansão da atividade econômica no futuro. "Muitos argumentam que estava tudo bem até dois, três anos atrás, mas não é bem assim.
Desde 2000, ou até antes, temos inconsistência tremenda no sistema de geração de despesa", diz Mendes. Essa dinâmica poderia ter ficado clara para a sociedade em 2000, mas o boom de commodities naquela década "anestesiou" a realidade. "Todo mundo achou que uma despesa que subia 7% ao ano era financiável. A ficha ainda não caiu para o público em geral e nem para os políticos".
Para os economistas, existe espaço para discutir a rigidez do gasto, mesmo com o Congresso atual, embora não seja fácil. Mendes sugere alterar o período de tempo usado para calcular a receita corrente líquida que vincula a despesa. Em vez de tomar como base os 12 meses anteriores, a regra passaria a levar em conta um período de 60 meses, corrigido pela inflação, "o que abrange um ciclo econômico inteiro". Appy propõe outras alterações. Sugere a criação de uma entidade fiscal independente que projetaria a receita dos próximos anos.
O gasto seria feito em cima dessa projeção. Se a arrecadação vem de acordo com o previsto, o projeto é executado; se superar, o excedente é poupado para momentos de recuo da arrecadação. Em momentos de queda, o fundo é usado para bancar os projetos, ou se faz dívida pública. Também defende melhor aplicação dos artigos 14 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que preveem que nenhuma despesa pode ser criada sem a receita que a sustente. "Na prática, eles não estão funcionando", observa Appy. Tão importante e tão difícil quanto mexer nas regras da vinculação de receitas é resolver o outro grande grupo de pressão sobre as despesas, os gastos previdenciários e "anexos". "Nesse caso é preciso adotar idade mínima e rever as regras de pensão", diz Pessôa. Mendes também enxerga espaço para uma agenda no Congresso.
Existem medidas que a oposição poderia abraçar para "cutucar" o governo. "Por que em vez de cutucar com piora da Previdência, não cutuca com um projeto de autonomia formal do BC? Ou com melhoria da governança das estatais?". O especialista vê com ressalvas projetos como a adoção de superávit primário estrutural, que considera as flutuações do ciclo econômico e seu impacto na receita, ou um limite para gasto da despesa. "Isso desmoralizaria o governo rapidamente, porque tem série de regras que estabelecem o crescimento da despesa. Sem mudar isso, não adianta."
Compartilhe:
<< Voltar