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A indústria brasileira no córner
Veículo: Valor
Seção: Economia
A assinatura de um rol de 35 acordos bilaterais entre o Brasil e a China por ocasião da visita oficial do primeiro ministro chinês ao país em maio último foi recebida como um novo marco nas relações diplomáticas sinobrasileiras. Menos pela densidade dos acordos que, de fato, são em sua maioria nada mais que memorandos de entendimento, é o apetite revelado pela missão chinesa de investir no Brasil valores superiores a US$ 50 bilhões nos próximos seis anos a novidade a ser colocada em perspectiva.
As relações econômicas entre os países se organizam fundamentalmente em torno dos fluxos de mercadorias, de capitais e de tecnologias. É fácil constatar que China e Brasil ainda se encontram na primeira fase, a das relações predominantemente assentadas no campo comercial. Nesse campo, a China já atingiu uma posição muito favorável. No início da década de 2000, a China surgia como uma potência imbatível na indústria tradicional (têxtil, vestuário, calçados, plásticos, etc.). Hoje, a enorme competitividade da manufatura leve de lá se manteve, mas eles também se tornaram igualmente imbatíveis nos segmentos da ponta da atividade industrial. Do lado de cá, a indústria brasileira ajustouse ao padrão de relacionamento comercial proposto pela China, percorrendo uma firme trajetória de especialização em produtos mais básicos.
Enquanto os preços internacionais desses últimos estavam nas alturas, essa estratégia mostrouse suficientemente atrativa. Porém, após o fim do ciclo altista que sobreveio com a crise global de 2008, a indústria brasileira entrou em uma posição de córner. Diplomacia econômica deve equacionar as oportunidades e os riscos envolvidos na cooperação com a China Quem observar os números do comércio bilateral sinobrasileiro vai verificar a extensão da transformação ocorrida. Em 2004 a China originava cerca de 6% do valor total dos bens industriais importados pelo Brasil. Em 2014, esse valor já havia atingido a casa dos 16%, fazendo da China o maior fornecedor de bens industriais para o Brasil.
Em valores, isso significa que nesses dez anos as compras de produtos industriais chineses decuplicaram, indo de US$ 3,6 bilhões para US$ 37 bilhões. Pois bem, desse montante, quase 60% referemse a bens de mais alto conteúdo tecnológico. No presente, os cinco produtos mais importantes nas compras da China são equipamentos de comunicação, informática, aparelhos de áudio e vídeo, equipamentos eletrônicos e produtos químicos orgânicos. Esse fluxo de bens intensivos em tecnologia cresceu nesses dez anos de US$ 2,1 bilhões para US$ 20,8 bilhões, atingindo nada mais nada menos do que quase 10% do valor das importações industriais totais do Brasil. No outro sentido, o das exportações do Brasil para a China, também se observou um crescimento, embora menos intenso.
Entre 2004 e 2014 as compras chinesas de produtos industriais brasileiros expandiramse de US$ 3,8 bilhões para US$ 23,8 bilhões, um crescimento de 6,3 vezes. Só que desse montante, em 2014, 92,8% foram de commodities (agroindústrias de primeiro processamento, insumos básicos industriais e petróleo). As exportações de bens de mais alto conteúdo tecnológico, que eram de 11,2% do total em 2004 reduziramse para 2,6% em 2014. Diferentemente, no campo dos fluxos de capital as relações estão ainda em uma fase muito incipiente dado que, salvo em algumas poucas exceções setoriais (distribuição de eletricidade ou petróleo), a presença de empresas chinesas no Brasil é muito tímida.
Por isso, ainda não são muito visíveis os alvos que estão sendo mirados pelos investimentos chineses. De um lado, não parece errada a visão de que a onda de investimentos diretos chineses no Brasil, assim como em outros países da América do Sul e da África, será fundamentalmente motivada pela busca de recursos naturais. Assim, o Brasil estaria diante de um ciclo de transnacionalização distinto do padrão que vigorou desde o póssegunda guerra, no qual empresas europeias e americanas se dirigiram para cá motivadas fundamentalmente pela busca de mercados.
Com base nesse diagnóstico, muitos veem na entrada de capitais chineses uma complementariedade positiva com a estrutura produtiva local, similar a que teria ocorrido no período inicial da entrada de capitais japoneses com igual objetivo nos anos 1970. Mas há boas chances desse tipo de visão revelarse incompleta. Parece claro que a tendência é que a atuação dos capitais chineses se diversifique em direção a empreendimentos em infraestrutura, com mais fortes encadeamentos industriais. Isso pode significar um aprofundamento da situação de córner pois os novos investimentos, externamente financiados, poderão induzir a um suprimento de bens de capital e de insumos especializados importados da China, reduzindo ainda mais o espaço para a mudança estrutural tão necessário para a retomada da indústria nacional. Diante desse quadro, é fundamental que a diplomacia econômica brasileira equacione adequadamente as oportunidades e os riscos envolvidos no aprofundamento da cooperação com a China e abra os horizontes para que essa parceria, necessária e desejável, possa se revelar efetivamente vantajosa. Uma dimensão vital para esse objetivo está no campo da tecnologia.
Aqui há um espaço para o Brasil manter uma interlocução com a China menos assimétrica do que a prevalecente nos fluxos de mercadorias e de capital. Existem diversos nichos tecnológicos nos quais esse maior equilíbrio é possível, nichos esses que podem e devem ser explorados nessa rodada de aproximação BrasilChina.
David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GICIE/UFRJ).
Escreve mensalmente às segundasfeiras. Email: gic@ie.ufrj.br
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