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Ensaio sobre a cegueira nacional

Veículo: Valor
Seção: Economia

No livro "Ensaio sobre a Cegueira", do português José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, a angústia aumenta a cada página, a partir de um caso isolado de cegueira branca, em que a claridade visual é plena, a ponto de, subitamente, o personagem não enxergar mais nada. Aos poucos, a cidade inteira vai sendo tomada pela moléstia. Constatado o contágio, o governo segrega os doentes em um antigo hospício, em condições desumanas. Parece que boa parte dos cidadãos brasileiros hoje se sente cega, pois não tem ciência para onde está sendo conduzida.

A orientação monotônica, que poucos nativos compreendem bem, atende pelo nome de ajuste fiscal. É capitaneado pelo ministro Joaquim Levy. Na medicina popular, o ministro seria o equivalente a uma casca de árvore chamada de paratudo. Como o nome já sugere, a planta cura dor de cabeça, de dente, diarreia, cólica menstrual, prisão de ventre, entre outros males. Não há dúvida quanto aos danos que a esbórnia fiscal do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff causou à economia e à autoestima do país. Mas é um engodo pregar que todos devem seguir bovinamente as orientações do ministro para merecer a redenção.

Organizar as finanças públicas é essencial para a sociedade, mas deve­se cobrar a responsabilidade pela lambança prévia, a fim de ser justos na distribuição do ônus. Sobre quem recairá o esforço é uma decisão política, na qual todos estão envolvidos, particularmente os que foram eleitos. Aos cidadãos, cabe pressionar para que contribuam com o que lhes é de dever. Organizar as finanças públicas é essencial para a sociedade, mas deve­se cobrar a responsabilidade pela lambança prévia Alguém já se perguntou por que as medidas "salvadoras da pátria" são sempre propostas no afogadilho? Talvez pelo vício brasileiro do improviso. Ou porque o planejamento foi destruído após a quebra do Estado brasileiro, na década de 1980. Tais argumentos são cínicos.

Qualquer mudança que ameace onerar, atingir ou empobrecer quem tem algo a perder costuma ser de imediato barrada institucionalmente. Sempre se vê, aqui e ali, algumas ações espaças e desconexas no que se refere a serviços públicos, porém a evolução é de uma velocidade quelônica. Uma pauta diametralmente distinta da que hoje domina a economia e a política no Brasil teria um efeito restaurador do respeito do país muito maior do que atingir os R$ 66,3 bilhões de superávit primário em 2015, sem ignorar, é claro, o fato de que não se pode iniciar um projeto viável sem um mínimo de equilíbrio financeiro.

Contudo o tempo passa e seguimos perdendo o bonde da história. Se a reforma administrativa, que permitiria aos governos fazerem ajustes, incluindo demissões de funcionários estatutários, quando necessárias e segundo o desempenho, houvesse sido aprovada há 15, 20 anos, hoje o ministro Levy dependeria menos do Congresso para pôr ordem nas contas públicas. Outro exemplo é o da reforma tributária, que jamais focou na questão da regressividade dos impostos, enquanto o mundo civilizado resolveu isso há tempo. Aqui, a dita reforma resume­se à perda de receita dos Estados, com a unificação do ICMS, e os mecanismos compensatórios da União decorrentes do fim da guerra fiscal.

A discussão sobre a tributação sobre grandes fortunas e a progressividade das alíquotas, tema que causa histeria no potencial público­alvo, ficou mais moderada depois que "O Capital no Século XXI", de Thomas Piketty, passou a figurar em primeiro lugar entre os livros mais vendidos (na categoria não ficção, ressalte­se). Sabe­se que a tese sequer se aproximaria do Legislativo, mas o debate vale por si só. Mais importante do que quanto se cobra de imposto/PIB é saber de quem se cobra e sobre o que incide a taxação. O principal conceito da tributação é ser o instrumento de financiamento público que possibilita a redução das disparidades de renda. Infelizmente, alguém ensinou aos nativos mais prósperos que impostos são punições oficiais injustificadas, das quais se deve evadir. O pior de tudo é que a versão vingou. Muitas outras questões testam a diferença entre ver e enxergar.

Pincemos um exemplo para reflexão: por que uma casta do funcionalismo público, da qual faz parte aqueles com cargos eletivos, tem plano de saúde privado pago pelo contribuinte? Os servidores públicos graduados deveriam dar o exemplo de que "comem com gosto a comida que fazem". Felizmente, não os custeamos também a escola privada dos filhos. Caberia unificar o critério, já que lógica é a mesma: ambos os serviços não lhes satisfazem no quesito qualidade. Portanto, os funcionários em questão recorrem à oferta privada.

Por uma questão de coerência, ou os contribuintes deveriam lhes subsidiar a escola privada ou os servidores públicos deveriam reconhecer a precariedade dos serviços médico­hospitalares públicos e arcar com suas despesas privadas com saúde. Apesar de tudo isso, há mais preocupação sobre se a inflação de 2016 vai convergir para o centro da meta do Banco Central do que com as metas para o ensino básico e fundamental da escola pública. Mesmo considerando as dificuldades práticas, políticas e financeiras de levar adiante projetos de longo prazo, é necessário dar o rumo. Com todo respeito ao ministro Levy, ele deveria ser um dos ministros menos visíveis do governo, apesar de ser o mais, pois seria o sinal de que a economia estaria funcionando regularmente. Agregar valor ao Brasil não é sustentar o status de "investment grade" pelas agências de rating. Isso não é sequer o começo, mas apenas uma sutura que, da forma como o mundo funciona hoje, estancará a hemorragia de uma ferida profunda que rapidamente levaria o paciente ao coma.

Qualquer avanço significativo em questões estruturais deveria pesar muito mais na avaliação da qualidade do crédito do país do que os indicadores econômicos de curto prazo. Diante da pressão, a presidente finalmente admitiu que emergência médica está fora do seu vasto leque de conhecimento. Dizem que fechou os olhos e entregou sua sorte ao engenheiro Joaquim Levy e ao advogado Michel Temer, morrendo de medo de, ao abri­los, enxergar aquela luz branca que já cegou muitos compatriotas. A presidente reluta em reabri­los, mas sonha com o dia em que alguém lhe revele que casca de paratudo serve também para curar cegueira, caso necessário. Na história de Saramago, apenas uma pessoa manteve a visão íntegra, justamente quem, ao fim e ao cabo, abriu as portas e destroçou a gangue que se apoderara do hospício e da qual todos os demais cegos foram vítimas.

Seria uma temeridade, mas se houver algum paralelo entre a ficção do autor e a inusitada crise brasileira de hoje, o fato é que há poucos candidatos a ser o guia imune à estranha cegueira epidêmica. Na narrativa literária, libertada, a turba sai pelas ruas sem norte, mas, um a um, assim como perderam, recuperam subitamente a visão. O cenário nas ruas era desolador, mas enxergar de novo anunciava o recomeço de tudo. Robério Costa, economista, é mestre em teoria econômica pela USP E­mail: rnpcosta@terra.com.br



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