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O que a Revolução Industrial não resolveu

Veículo: Folha de S. Paulo

Seção: Colunistas (Luli Radfahrer)

Imagine que, por uma tecnologia que não cabe a esta modesta coluna detalhar, um grupo de cientistas fosse capaz de recuar 250 anos no tempo e trazer um adulto diretamente de 1765 para o nosso cotidiano. Para tornar o experimento mais preciso, esse indivíduo seria buscado no lugar com o maior índice de desenvolvimento tecnológico da época: o coração do Império Britânico.

Para facilitar a história, chamemos o visitante de John. Uma das primeiras precauções que os cientistas teriam que tomar seria o de protegê-lo do choque cultural. Para isso, psicólogos e historiadores teriam preparado um apartamento com todas as comodidades de sua época, isolando-o de potenciais ameaças desconhecidas ao mesmo tempo que o emporcalhavam com as mazelas conhecidas, de mofo à fumaça de lareira e lampião. Tudo pronto, o experimento começaria.

Mesmo com todas as precauções, provavelmente a primeira reação dele seria de um gigantesco espanto e incredulidade. Mas isso já seria esperado. Culto para os padrões de sua época, o mais próximo de uma fantasia técnica que Mr. John teria lido seriam as Viagens de Gulliver. As ideias de Isaac Newton já tinham sido assimiladas, mas Goethe ainda não tinha influenciado o mundo com sua curiosidade, Darwin nasceria em 50 anos, Júlio Verne e H. G. Wells ainda levariam mais de um século para escrever suas histórias. A ciência ainda não era nem ficção.

Assumindo que a transição tenha ocorrido sem problemas, aos poucos o cotidiano seria revelado ao visitante. Vindo de uma época em que a Revolução Industrial mal havia começado, tudo para ele seria fantástico, místico, mágico, assombrado. As indústrias têxteis, metalúrgicas e químicas ainda não tinham sido inventadas, o que o deixaria perplexo até diante de um pano de chão.

Da mesma forma que hoje vive-se muito bem sem saber como funcionam as antenas de transmissão de rádio, abatedouros de frangos e torres de controle aéreo (o que, em alguns casos, é uma bênção, pois o conhecimento talvez deixasse muitos com medo de usar tais tecnologias), o mundo seria revelado para Mr. John como se fosse uma mistura de magia com realismo fantástico.

Aos poucos ele teria contato com o mundo exterior. Escolas, tribunais, bancos, consultórios médicos e igrejas seriam facílimas de reconhecer. Redações de jornais, rodoviárias e aeroportos provavelmente não chamariam sua atenção. "Mudam as formas de transporte, mas os processos continuam os mesmos", pensaria.

Celulares e tablets talvez não o fascinassem tanto quanto obturações dentárias, comprimidos multivitamínicos, fornos de micro-ondas e câmaras fotográficas. Por todo lugar que ele olhasse, sistemas complexos de fabricação e logística criavam a matéria-prima desse futuro mágico, cheio de plástico, concreto, aço e papel por toda parte, em todas as espessuras, e com tantas cores. Ah, admirável mundo novo que abriga tais pessoas.

Depois de algumas semanas tentando assimilar as novidades do 21º século, ele provavelmente pararia de pensar na natureza das coisas e as aceitaria sem grandes questionamentos. Da mesma forma com que hoje raramente alguém se impressiona com o trabalho de marcenaria de um piano ou de química em uma tinta, ele deixaria estar, maravilhado com o engenho e arte da mente humana. Que vida incrível teriam os tataranetos dos tataranetos de seus tataranetos.

Uma coisa, no entanto, não faria sentido para seus parâmetros. A princípio ele teria acreditado que deveria ser um erro de percepção. Mas o fato persistia, incomodando e complicando sua compreensão. Sempre que a oportunidade surgia para fazer a pergunta que o incomodava, por educação ele a deixava de lado, com medo de ser indelicado. Um dia não resistiu e perguntou:
- Por que, com tanta tecnologia, vocês ainda tem gente pobre?

No dia seguinte quando acordou, tudo havia mudado. Seus anfitriões o tinham devolvido para o século 18. Atordoado e arrependido, Mr. John passou o resto de sua vida tentando entender o que havia ocorrido. Será que tinha descoberto algum segredo estratégico? Ou que tinha causado algum conflito com sua pergunta?

Anos mais tarde, sem contato algum com seus antigos anfitriões, John se contentaria com duas possíveis hipóteses para sua volta repentina ao passado: a vergonha deles em deixar de lado uma questão essencial e a esperança de que, de alguma forma, o visitante mudasse a situação enquanto ainda era novidade.

A corrida tecnológica iniciada no século 18 tinha um desafio bastante claro: a eficiência dos processos industriais. Nesse aspecto, é inegável que tenha sido bem-sucedida. Ninguém pediu a ela que fosse justa ou sustentável. Essas questões vieram depois. Está na hora de criar novos processos que as tenham como meta principal, caso contrário não adianta chorar mais tarde. 



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