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Uma vida nova para os resíduos têxteis

Veículo: Valor Econômico

Seção: Economia

Você já parou para pensar o que ocorre a uma peça de roupa depois que ela passa por todas as etapas do varejo ­ após desfile, lançamento nas lojas, liquidação e venda em pontas de estoque? Não? Tudo bem: quase ninguém pensa. E é justamente por isso que muitas dessas roupas ­ além de sobras de tecidos e outros itens de moda ­ são incineradas ou simplesmente jogadas em aterros sanitários depois de esgotada a sua "vida útil" de vendas. O final do ciclo de vida da moda não tem nada de glamouroso.

Felizmente, começa a surgir quem se preocupe não apenas com as peças de roupa que não tem mais valor comercial, mas também com o resíduo produzido pela moda como um todo. Pensar em como dar uma vida nova ­ através do "redesign" (redesenho) ­ ao que é descartado por essa indústria é a proposta da We Did. "Não somos uma ONG e nem fazemos assistencialismo: somos um negócio social", define a designer e joalheira Patricia Centurion, criadora da empresa.

A We Did é inspirada em uma ideia holandesa, a I Did Slow Fashion, que começou produzindo e vendendo artigos de moda feitos por mulheres imigrantes, que chegavam à Holanda sem trabalho ou conhecimento da cultura local. Criada pela designer gráfica Mireille Geijsen, a I Did tem apoio governamental para oferecer treinamento e para inserir imigrantes no mercado de trabalho holandês, por meio da moda.

No Brasil, a We Did trabalha dentro do conceito do "upcycling", algo que pode ser traduzido como "reciclo", pois define justamente isso: um recomeço. "A intenção é dar novos significados para produtos e matérias­primas descartadas (novas ou usadas), utilizando como mão de obra comunidades da base da pirâmide, incentivando o comércio justo e a geração de renda", diz Patricia, que tem ao lado, na empreitada, a publicitária Maria Antonia Teixeira e a estilista Ana Bento.

Levando em conta que o Brasil produz cerca de 9 bilhões de peças de roupa por ano e que quase 20% do tecido utilizado para isso é desperdiçado ­ a ação parece mais do que urgente. E além de retrabalhar o que iria para o lixo, a empresa ainda envolve cooperativas, grupos produtivos e ONGs que normalmente ficam à margem da poderosaindústria da moda. "Conseguimos gerar conhecimento e renda", diz Patricia. Entre as cooperativas envolvidas nos projetos da We Did, atualmente, estão a Cooperaldeia e a Cardume de Mãos, ambas do Estado de São Paulo.

E a renda, diz a designer, não é gerada apenas no âmbito produtivo, mas também junto às grandes empresas doadoras de matéria­prima. "O custo para manter em estoque ou para descartar esses resíduos é muito alto para as empresas têxteis e de moda", aponta Maria Antonia. Destiná­los ao We Did significa, não raramente, a solução de um problema e uma grande economia.

O trabalho de "redesign" promovido pela We Did funciona assim: a empresa que concorda em ser parceira (uma tecelagem, uma confecção ou uma fabricante de estofados, por exemplo) doa os seus retalhos ou peças que sobraram da coleção passada. Os estilistas da We Did e as cooperativas produtivas desenvolvem novos produtos a partir da matéria­prima doada. Pedaços de denim, por exemplo, podem virar porta­óculos ou carteiras. Depois de produzidas, as peças voltam à empresa doadora, que se responsabiliza pela comercialização ­ e o que era custo vira receita. O novo ciclo se completa.

As peças ganham valor agregado e ainda levam etiquetas que relatam como e por quem cada uma delas foi confeccionada. "Amamos design, por isso os produtos são criativos, diferenciados e exclusivos: para ser 'eco­friendly' não precisa ser eco­careta", define Ana Bento, responsável pela coordenação de estilo da empresa.

Outro braço de atuação da We Did é no segmento de brindes corporativos. O processo é semelhante ao praticado por outras empresas especializadas nesse segmento, com a diferença que os brindes são, novamente, fruto de redesenho e reciclagem, ou seja, carregam um "ativo" social. Um exemplo desse trabalho foi o feito para a escola Winner Idiomas, que presenteou os professores e alguns clientes com mochilas e porta­tablets desenvolvidos pela We Did. Para a criação das peças, foram utilizados malotes de correio e retalhos de denim, que haviam sido doados por parceiros. A confecção dos acessórios ficou a cargo da Cooperaldeia, a partir do protótipo criado pela We Did.

Iniciativas como essa ­ que transformam uma mercadoria sem valor em um produto com design ­ podem amenizar o problema do lixo gerado pela moda. De acordo com o Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem do Estado de São Paulo (Sinditêxtil), somente as 1.200 confecções instaladas na região do Bom Retiro, bairro da capital paulista, produzem quase 12 toneladas de retalhos (sobras) por dia. Para tentar dar uma destinação correta ­ e com responsabilidade ambiental ­ a esse material, o Sinditêxtil criou o projeto Retalho Fashion.

Segundo a entidade, os grandes geradores de resíduos, que correspondem a 60% das empresas da região, contratam empresas especializadas em coleta de lixo para fazer o serviço. O que ocorre é que esses resíduos têxteis vão parar em aterros sanitários, ou seja, não retornam à indústria de moda. Há ainda uma parte que é simplesmente deixada nas ruas, gerando poluição e outros impactos ambientais e sociais. Com o apoio da Prefeitura de São Paulo, a entidade espera organizar uma coleta seletiva e montar cooperativas que possam se responsabilizar pela venda dos retalhos para empresas de reciclagem.

"Acredito que as pessoas vão começar a se interessar por saber como os artigos de moda são produzidos, da mesma forma que já fazem com a comida, valorizando os orgânicos", diz Patricia. "O consumo está ficando mais consciente."



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