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A economia da saia justa

Veículo: Valor Econômico

Seção: Economia

No final dos anos 80, arrisquei alguns rabiscos sobre James Buchanan, Prêmio Nobel de Economia em 1986, um dos corifeus da teoria da Escolha Racional.

Buchanan disparou críticas ácidas e claramente hostis às práticas fiscais e monetárias do que se convencionou chamar "era keynesiana". Não trepidou em afirmar que as democracias ocidentais deverão enfrentar a inclinação dos governos a trabalhar no vermelho, a gerar déficits em resposta a demandas dos eleitores ou de grupos particulares de interesses.

Buchanan atribui essa inclinação para o déficit, ou seja, essa facilidade revelada pelos governos no atendimento das demandas dos eleitores e dos grupos de interesse ao desaparecimento de dois constrangimentos garantidores da boa gestão das finanças públicas na era do liberalismo clássico, se é que existiu tal coisa. O primeiro deles é o padrãoouro, que impedia o recurso fácil à emissão monetária para financiar déficits orçamentários. Os políticos estavam, assim, obrigados a escolher alternativas mais dolorosas para sustentar o aumento dos gastos.

A burocracia do Estado passou a adotar a "racionalidade" privada na gestão da coisa pública

O segundo constrangimento era de ordem moral: foi eliminada a resistência vitoriana às políticas que descarregam sobre as gerações futuras os custos de uma dívida pública crescente. Na visão de Buchanan, o impacto das duas guerras teria debilitado os laços intergeneracionais e tornado o presente infinitamente mais valioso que o futuro, o consumo mais valorizado do que a frugalidade, a abstinência e a previdência. Ele escreveu "O dano infligido pela morte e pela guerra à frugalidade como virtude moral foi acentuado pelo fortalecimento de uma filosofia relativista, desde os primeiros anos do século XX. Na medida que a filosofia relativista invadiu os valores absolutos da sociedade vitoriana, ganhando apoio ao longo do século XX, as barreiras da frugalidade foram seriamente vulneradas".

Em 2013, essa tese recebeu uma contribuição de Niall Ferguson. No curso do debate com Paul Krugman a respeito das políticas de austeridade, o historiador de Harvard atribuiu ao homossexualismo de Keynes a valorização do presente e a depreciação do futuro. Para isso, valeu­se da frase de Maynard "No longo prazo estaremos todos mortos". Na opinião de Ferguson, Keynes descurava do futuro porque não precisava se preocupar com o destino dos filhos, netos e bisnetos. Ao desvendar o "paradoxo da poupança", Keynes zombou da falácia de composição implícita na tentativa de estender para o conjunto da economia as virtudes da frugalidade familiar. O conceito de dívida sem ônus desterrou na irrelevância política, por 40 anos, o temor clássico dessa forma de financiamento dos governos.

Mesmo depois do casamento com a bailarina Lydia Lopokova, o Keynes de Ferguson preferia ler poesias para a mulher a exercitar os deveres (prazeres?) do sexo. Escalavrado pela opinião pública, o prodígio de Harvard fez mea culpa. Seja como for, para Buchanan e Ferguson as regras da boa gestão orçamentária foram destroçadas pela ação emoliente dos ensinamentos de John Maynard Keynes.

O diagnóstico do "fracasso" da "era keynesiana" é valioso porque assinala de uma perspectiva conservadora a inconformidade com os conflitos gerados pelas tentativas de "democratização do capitalismo". Não há como discordar de Jurgen Habermas quanto à indissolúvel tensão que atravessa permanentemente as relações entre capitalismo e democracia.

Acuadas pelo avanço ideológico e político das forças sociais que sustentam a reinvenção do liberalismo, as correntes progressistas mais consequentes tentam cavar suas posições nas trincheiras na democracia participativa, sem abrir mão dos cuidados e normas do Estado de Direito.

Seria necessário, porém, investigar mais a fundo as origens do contraditório entre "déficit de racionalidade" e "déficit democrático". Em seu livro "Tempo Comprado ­ A Crise Adiada do Capitalismo Democrático", Wolfgang Streek expõe as dificuldades impostas aos governos democraticamente eleitos, hoje escandalosamente submetidos aos ditames dos mercados financeiros e da mídia­empresa. Esse aprisionamento enseja a divulgação das banalidades negativas sobre o Estado do Bem Estar Social: o cobrador de impostos, competidor com o setor privado nos mercados de dívida, causador da inflação na medida em que financia o seu déficit com emissão monetária, exemplo de má gestão empresarial.

Robert Skidelsky, biógrafo de Keynes, ironizou o temor de Hayek, preocupado com a saúde da democracia afetada pela força excessiva do Estado. Muito ao contrário, diz Skidelsky, o Estado foi fraco para impedir a invasão das forças da concorrência, ficando à mercê das práticas predatória e corruptas que reduzem a autonomia da gestão econômica. "Keynes superestimou a possibilidade de uma gestão econômica racional pelos governos democráticos", conclui.

A história dos últimos 40 anos, desvela as raízes do déficit democrático. Aos neoliberais não interessa reduzir o tamanho do Estado, senão capturar suas forças para apoiar a difusão da concorrência em todas as esferas da vida.

Encarnada na concorrência entre as grandes empresas oligopolistas e nos mercados financeiros enlouquecidos, a "razão privada" tomou de assalto a esfera pública. Enquanto conta a fábula "Mais Estado, Menos Estado" trata de submeter a seu comando os regimes fiscais e tributários, espremendo os recursos destinados a atender às demandas dos setores mais frágeis e sub­representados. (Fora as contas na Suíça).

A burocracia do Estado passou a adotar a "racionalidade" privada na gestão da coisa pública e isso afetou o comportamento dos agentes públicos, de empresas até os órgãos encarregados de administrar a justiça, para não falar das políticas de saúde, educação, transporte de massa etc. O projeto ocidental da cidadania democrática e igualitária não "cabe" no espartilho amarrado na ilharga das sociedades pela "racionalidade" do capitalismo contemporâneo. 



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