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Economia fechada, 'fé' e dogma

 

Veículo: Valor Economia

Seção: Economia

O Brasil, desde o início da sua industrialização, é criticado pelos liberais como uma economia fechada. Hoje a crença continua a mesma e a repetição do mantra sustenta-se em um único critério: a relação entre o valor do comércio exterior brasileiro e o PIB. Segundo esse critério, o país seria uma das economias mais fechadas do mundo. Todavia, para além de um mundo simplificado demais, a economia brasileira recente nega o culto fiel ao "deus" mercado.

Mas o que dizem os sacerdotes liberais? Os melhores nomes admitem que o país, nas últimas duas décadas, mudou de patamar quanto à abertura comercial. Se em 1996, o comércio exterior (exportação mais importação) representava em torno de 12% do PIB, em 2004, o Brasil chegou a um grau de abertura perto de 24%. Hoje, a taxa é pouco mais de 21%.

O problema surge na comparação internacional. A maioria das nações importantes para o comércio exterior brasileiro possui grau de abertura bem maior. Isso é fácil de verificar nos Brics (África do Sul: 63,4%; Rússia: 41,3%; China: 45%; Índia: 41,5%) e nos países ricos (França: 46% e Alemanha: 72,7%). A economia brasileira seria, portanto, fechada, inviabilizando seu crescimento. Por que?

Como é possível falar em mercado protegido se as tarifas de importação caíram de 47% em 1983, para 11,6% em 2012?

Segundo os liberais, isso aconteceria porque o maior fechamento da economia conduz à perda de competitividade ao evitar a exposição da produção à competição internacional. Assim, produtos e processos envelheceriam, obstando a modernização e o barateamento de bens e serviços. A salvação estaria na abertura comercial, no Estado mínimo e na contenção dos salários. A penitência necessária dos fiéis seria compensada com crescimento, mas no longo prazo (?).

O problema desse "auto de fé" está no dogma: a economia brasileira é fechada. O dogma reduz o horizonte crítico dos fiéis e os faz esquecer as outras dimensões em jogo nas trocas internacionais. O engano começa a evidenciar-se quando se observa que os Estados Unidos têm grau de abertura de 23,3%, portanto, semelhante ao Brasil. Assim, economias bastante diferentes, com inserções internacionais díspares, observadas pelo critério liberal, seriam, ambas, fechadas.

O engano continua: como é possível falar em mercado protegido, se as tarifas brasileiras de importação caíram, em média, de 47% em 1983, para 21% em 1992, 14% em 2000 e 11,6% em 2012? Pior: 11% de tarifa é irrelevante. Primeiro devido à sobrevalorização, por longos anos, da taxa de câmbio, barateando em dólar qualquer produto importado. Comparada com janeiro de 1992, a sobrevalorização chegou a 30% entre 1994 e 1998 e, recentemente, voltou a superar os 20%. Segundo, porque as tarifas, hoje, têm pouco destaque no comércio internacional.

Apenas isso tornaria difícil afirmar que a economia brasileira é fechada. Mas os números continuam a contradizer a "fé". Por exemplo, o dogma do isolamento do país acredita que a importação não pode crescer. Contudo, o coeficiente de penetração, isto é, o percentual de produtos no mercado nacional oriundo de importações, cresceu com vigor, principalmente a partir de 2003. Por exemplo, os setores elétrico, químico, farmoquímico e farmacêutico, informática, eletrônicos e ópticos, têxtil, veículos automotores, vestuário e acessórios, entre outros, viram, entre 1996 e 2013, duplicar a parcela de importados na oferta local de bens. No setor de máquinas e equipamentos, o coeficiente subiu mais de 60%.

Mais importante, porém, é perceber que a economia brasileira já é internacionalizada. De acordo com o Censo de Capitais Estrangeiros do Banco Central, são as companhias forâneas que lideram os setores mais importantes da economia, marcadamente na indústria. No setor automotivo reinam Volkswagen e Mercedes-Benz (Alemanha), Ford e GM (EUA) e Fiat (Itália). As novatas chinesas disputam com as francesas maior espaço. O mesmo acontece nos defensivos agrícolas: Monsanto, Dow e Dupont (EUA), Syngenta (Suíça) e Basf e Bayer (Alemanha). Ou no setor eletroeletrônico, ou bens de capital ou alimentos ou outros.

 
Leo Pinheiro/Valor

 

Essa liderança significa que, dado o caráter de oligopólio mundial das empresas, as decisões pouco se referem à economia nacional. Suas escolhas para o Brasil são definidas a partir dos parâmetros de sua inserção no mercado mundial e da lógica da concorrência internacional.

A crença na economia fechada fragiliza-se uma vez mais ante dois efeitos da liderança das ádvenas transnacionais. O primeiro revela que a liderança dos oligopólios estrangeiros nos setores mais importantes da produção brasileira determina, desde o exterior, as tecnologias empregadas no país (máquinas, equipamentos, processos, design, etc.). O segundo reconhece que a lógica competitiva mundial, construída por essas líderes, induz, pela propaganda e a importação cultural, ao mesmo desejo de consumo em qualquer sociedade comercialmente integrada. Aqui não é diferente.

O Brasil, destarte, está integrado aos processos produtivos dos oligopólios internacionais que lideram a produção mundial. Não é, portanto, uma economia fechada.

Será, então, que o barulho em torno desse debate é pregação que foge à economia política? É preciso separar o joio do trigo e deixar claro que não está em discussão se o Brasil deve ter mais ou menos comércio internacional. O que se critica é a visão simplista do problema, que leva a interpretações equivocadas da realidade complexa e, desse modo, conduz a proposição de políticas econômicas insustentáveis que nunca nenhum país rico aplicou em sua decolagem para o desenvolvimento.

Falta ao Brasil, na verdade, reposicionar sua economia para fazer do comércio exterior uma fonte de riqueza. Isto é, construir uma nova inserção internacional, onde exportar bens industrializados seja a meta, principalmente a partir de bens de alto valor agregado, se possível utilizando tecnologia nacional. Para tanto, a política industrial, subordinada a um plano de desenvolvimento nacional, precisa estar entre as prioridades do novo governo. Se este é o futuro que se quer, será preciso construí-lo realisticamente, porque os dogmas, agora, são de pouca valia.



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