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A trapalhada da desoneração da folha

Veículo: Valor Econômico

Seção: Economia

 
João Wainer/Folhapress / João Wainer/Folhapress

 

Desde 2011, o governo vem aumentando o número de setores em que, no lugar dos 20% da contribuição sobre a folha para o INSS, as empresas pagam o equivalente a 1% e 2% de seu faturamento. O novo sistema reduz os custos das empresas contempladas e o Tesouro cobre a diferença. Esse ano o governo estima que a renúncia fiscal seja de R$ 21,6 bilhões, que será rateada entre todos os contribuintes da Receita Federal e beneficiários dos demais programas do governo.

Em todo o mundo, a contribuição para a seguridade social incide sobre a folha de pagamentos. O vínculo entre a renda do trabalho e as aposentadorias advém do fato dessas serem calculadas com base nos salários ao longo da vida e na expectativa de vida. A população brasileira está envelhecendo e a expectativa de vida aumentando. O lógico é que a idade de aposentadoria e a alíquota da contribuição sobre os salários aumentem para mitigar a expansão do déficit do INSS.

Ao transferir o financiamento da seguridade para o faturamento, tornou-se mais difícil justificar um aumento da idade de aposentadoria ou da alíquota daqui para frente. Sendo a previdência apenas mais um item do Orçamento da União, as suas demandas entrarão em conflito com outras rubricas como gastos com crianças e jovens e saúde, por exemplo. É muito mais fácil - técnica e politicamente -proteger os demais gastos se houver um claro vínculo entre folha salarial e gastos da previdência.

Nesse sentido, a desoneração significa um retrocesso nas instituições fiscais ao se tornar menos nítida a separação entre a Seguridade Social e o Orçamento da União.

Ao desonerar a folha, o governo teve por objetivo reduzir o custo do trabalho e aumentar a competitividade das empresas e o emprego. Na realidade, a redução do custo trabalhista resulta da renúncia fiscal. De fato, uma pesquisa realizada pela CNI mostra que 87% das empresas contempladas disseram que houve efetiva redução de contribuição.

Para reduzir o custo do trabalho bastava reduzir a alíquota de contribuição sobre a folha. A mudança da base de incidência era inteiramente dispensável. Porém, a mudança da base tem efeitos colaterais que são mudar os incentivos das empresas na escolha de tecnologias e setores. Não sei se os formuladores do governo chegaram a refletir sobre eles.

Quando se muda da folha para o faturamento a base de incidência, não só a renda do trabalho, mas os demais serviços empregados pela empresa passam a arcar com o financiamento da seguridade social. A "desoneração" equivale a tornar a contratação de trabalhadores relativamente mais barata que outros serviços, como aqueles de um equipamento. Evidentemente, ao alterar os preços relativos entre trabalho e capital, a medida produz um incentivo para as empresas reduzirem a razão entre equipamentos e trabalhadores, o que reduz a produtividade do trabalho.

Programa distorce os incentivos das empresas em relação às tecnologias e aos setores onde investir

Nesse sentido, a alteração na base tem o efeito inverso do que se recomendaria em um país cuja taxa de desemprego está baixa e as restrições ao crescimento da renda são a falta de investimentos e baixa produtividade do trabalho. Além disso, o efeito da medida sobre a competitividade pode ser negativo se a produtividade cair mais que a folha.

Para ilustrar o argumento, imaginemos dois cursos de informática, com o mesmo faturamento e o mesmo lucro, em que um emprega apenas professores para ensinar e o outro emprega menos professores e usa intensivamente softwares de demonstração. Vem a mudança na base de incidência, e o primeiro curso passa a ser mais lucrativo que o segundo. Suponhamos que a tecnologia usada pelo segundo curso é melhor para os alunos e que, com o tempo ela aumentaria sua parcela de mercado. Com a mudança da incidência de imposto, essa tendência vai ser mais lenta, ou até abortada, para prejuízo dos estudantes.

A lei não se aplica a todos os setores. Suponhamos, a título de exemplo, que a lei altere a incidência da contribuição para o setor de transportes rodoviários, mas não para serviços hospitalares. Devido à renúncia, os incentivos para investir em transportes passam a ser maiores que em hospitais. Mas o que acontece se, dadas as carências da população, o melhor é que haja mais investimentos em saúde do que em transportes?

A conclusão é que a desoneração distorce os incentivos das empresas em relação às tecnologias e aos setores onde investir, diminuindo a importância de outras políticas públicas, das vantagens competitivas acumuladas pelas empresas ao longo dos anos e das preferências individuais e sociais.

O governo anunciou que mais setores serão incluídos no programa. Sabe-se lá aonde chegará a renúncia fiscal quando todos os setores forem contemplados. À medida que mais setores sejam incluídos, teremos mais uma fonte de déficits fiscais já que as renúncias são agora permanentes.

É evidente que, por ser discricionário na escolha dos setores, o programa incita as empresas a brigar junto ao governo para serem contempladas. Com isso, os políticos contam com mais um canal para criar dificuldades para vender facilidades.

É impossível ver alguma vantagem no programa de desoneração da folha. Ao contrário, há vários aspectos negativos como o incentivo ao emprego quando o mercado de trabalho está apertado, o desincentivo ao investimento e ao aumento da produtividade, quando esses são os dois limitadores do crescimento econômico. Fora efeitos totalmente relevados pelas autoridades, e que estão na base do desenvolvimento das economias, quais seja a escolha das empresas entre tecnologias e setores onde investir.

Enfim, o programa não foi bem desenhado e deve produzir enormes perdas para o desenvolvimento do país.

 



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