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As 'neomodistas' e sua costura da delicadeza

Veículo: Valor Econômico
Seção: Economia
 
Ana Paula Paiva/Valor / Ana Paula Paiva/ValorGisele Dias: "Eu não acompanho as publicações de moda, nem os desfiles. Gosto de criar a partir dos materiais que tenho em mãos"

 

Antes, bem antes da invenção dos grandes varejistas e suas coleções altamente perecíveis, a moda viveu o tempo da delicadeza. Antes da industrialização, quando tudo era feito artesanalmente, a roupa seguia um ritmo ditado pelas mãos. O processo começava com a escolha do tecido, a partir de suas possibilidades criava-se a modelagem. E mesmo quando o desenho vinha antes, buscava-se a matéria-prima adequada para dar forma à criação. Uma coisa dependia da outra e a roupa era resultado de uma equação bem elaborada.

Isso tudo foi antes da gigantesca indústria impor a sua velocidade, mudar os processos, acelerar a produção a ponto de ser capaz de abastecer de novidades incontáveis pontos de venda ao redor do mundo, quase diariamente. Mas se hoje, na moda, tudo anda "fast", há quem não abra mão de ser "slow" e fazer da arte da costura uma profissão de fé. São as neomodistas.

"No início, pensamos em oferecer peças de alfaiataria para mulheres", conta Liliane Beneduzzi Sancovsky. "Mas percebemos logo que não iríamos conseguir competir com o 'fast fashion' se fôssemos investir em peças comuns de tecido e malha", diz Liliane, que abriu a marca feminina GA'U, no final do ano passado, com a sócia Luciane Gerodetti. A GA'U então mudou de rumo: tornou-se uma grife de roupas de couro, cuja coleção, pequena para os padrões do mercado, é vendida em um ateliê, em um charmoso predinho nos Jardins.

 
Anna Carolina Negri/ValorPara Bibi Barcellos, uma roupa bem feita pode fazer qualquer mulher se apaixonar pela própria imagem. “O que faço é usar a técnica para melhorar o corpo”

 

Com produção a cargo de artesãos, a marca achou o seu nicho num segmento que foge do varejo de massa. "As peças são cortadas uma a uma. Assim, conseguimos fugir do óbvio, criar coisas exclusivas e que vão durar por mais de uma estação", diz Liliane. A durabilidade do material vai na contramão do descartável. "São roupas para durar uma década", aposta Liliane, que nem por isso se furta de oferecer um estilo contemporâneo, acompanhando as mudanças de comportamento.

"Não seguimos o calendário por estação: nossas roupas podem ser usadas o ano todo." As coleções seguem um tema e vão se somando às outras, dividindo o mesmo espaço. Nas criações, de Liliane e Luciane, o couro se mistura ao chifon de seda, à lã fria e ao algodão. O resultado é surpreendentemente "fashion" e elegante.

Outra modista de mão cheia, a estilista Bibi Barcellos acredita que uma roupa bem feita - pensada para atender a um tipo de corpo e se adequar a um estilo de vida - pode fazer qualquer mulher se apaixonar pela própria imagem. "O que faço é usar a técnica para melhorar o corpo, dar conforto e segurança", diz a estilista. O que normalmente provoca descontentamento é a tentativa inócua de ficar bem em peças que seguem um padrão rígido - caso das roupas do "fast fashion". Essas dificilmente ficam bonitas em quem não tem um corpo de Gisele Büdchen.

 
Luciane Gerodetti e Liliane Beneduzzi Sancovsky, da marca GA'U: grife de roupas de couro para se diferenciar do 'fast fashion'

 

Designer de vestidos de noiva, mas também de peças para o dia a dia, Bibi tem como clientes mulheres que não se encontram na "modinha" dos shoppings centers. "Atendi uma cliente inconformada por passar calor mesmo usando vestidos leves", diz a estilista. "Pedi que ela lesse a etiqueta de composição da peça: era de poliéster. Estava explicado o calor."

Diferente das roupas vendidas em massa, a feita por Bibi Barcellos nasce de uma necessidade por conforto, prazer, praticidade e qualidade, e começa a ganhar corpo com a escolha da matéria-prima. Aliás, como se fazia antigamente. "A roupa precisa ser uma tradução de quem a veste", diz Bibi, que recebe as clientes num sobrado, dentro de uma bucólica vila, no bairro de Higienópolis. "Dessa forma, ficamos felizes e até nos esquecemos de que estamos de roupa - porque nada incomoda."

Mas, claro, ainda há quem prefira seguir à risca as tendências massificadas de moda, mesmo que a idade, o corpo e o estilo não permitam. Tudo bem. Mas é bom saber que tem gente nadando contra essa maré - fazendo vestimentas que estão a serviço do corpo e não o contrário. "Sei que o meu trabalho é um ponto fora da curva e não satisfaz o consumo instantâneo, mas acredito em coisas feitas para durar", diz Bibi.

Engana-se quem pensa que as neomodistas não acompanham as mudanças de comportamento. "Eu amo macacões e percebi que as minhas clientes sempre elogiavam os meus, que são antigos, da marca Huis Clos", diz a estilista Vanessa Abbud. Especializada em roupas de festa, Vanessa decidiu criar uma linha de macacões que vão do trabalho a ocasiões mais formais. Os primeiros modelos começam a chegar em março ao ateliê da estilista, aberto há alguns meses, na Vila Nova Conceição.

 
DivulgaçãoModelos de Vanessa Abbud, especializada em roupas de festa (fotos acima e embaixo)

 

Ex-designer da linha festa da Huis Clos, Vanessa aprendeu com a própria Clô Orozco (que morreu no ano passado) como se faz uma roupa impecável e estilosa. Em seu espaço, que agrega também a produção e showroom, Vanessa tem um jeito especial de trabalhar: tem cerca de 50 modelos de roupas de festa (vestidos e conjuntos) já prontos, que podem ser experimentados in loco e feitos sob medida para cada cliente. "Muitas vezes, elas fazem adaptações ou até criam um novo modelo: feito com parte de um vestido e parte de outro", diz a estilista. "E a graça é essa mesma: chegar a um modelo que provavelmente só ela terá", afirma Vanessa, que costuma pedir um mês de prazo para entregar a peça pronta.

Vanessa também tem uma boa clientela de noivas, que têm à disposição 20 modelos de vestidos pré-concebidos - que também podem ser adaptados ou completamente modificados (num prazo mínimo de seis meses). "Aqui a lógica do varejo funciona ao contrário. Não tentamos impor um gosto ou tendência: é a cliente que diz o que quer", afirma Vanessa. "Para nós, cada mulher é única."

 
Divulgação

 

Outra partidária dessa filosofia, a estilista Gisele Dias entrega o seu "core business" no nome: A Modista, ateliê-loja aberto há nove anos. "Esse ofício, o da modista de antigamente, está morrendo infelizmente", diz Gisele, cujo ateliê nos Jardins foi montado em uma casa dos anos 1940, restaurada cuidadosamente para transportar a um tempo em que o universo da costura fazia parte do cotidiano das pessoas. De lá, saem vestidos para casamento e outras ocasiões especiais. O atendimento é com hora marcada.

Gisele é outra que não dá muita bola para as tais "tendências", preferindo exercitar um estilo atemporal, com pitada "vintage". "Eu não acompanho as publicações de moda, nem os desfiles. Gosto de criar a partir dos materiais que tenho em mãos", afirma. "Minha inspiração vem de outros lugares", diz Gisele, que recentemente abriu o seu ateliê para receber a exposição "Absinthe", com fotos de Gleeson Paulino. Essa será a primeira de uma série de mostras, que já tem até nome: A Modista - Art. O diálogo da moda com as artes, na visão da estilista, é enriquecedor. "Uma coisa alimenta a outra e mantém a cabeça aberta."

Felizmente, são muitas Vanessas, Giseles, Lilianes e Bibis por aí, praticando uma filosofia que se contrapõe à massificação da moda. Não se trata aqui de negar que o consumo rápido é uma necessidade dos dias de hoje, mas de olhar para o que ainda é feito com cuidado, por gente que põe em prática técnicas de costuma capazes de atender às diferenças. Porque, por mais que indústria assim queira nos fazer crer, ninguém é igual a ninguém. Aceitar essa verdade é libertador.

 



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