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Na rota da Argentina

Veículo: Valor Econômico

Seção: Opinião

Fonte: Pedro Ferreira e Renato Fragelli

 

Em julho do próximo ano, o Plano Real completará vinte anos. Nesse período, os brasileiros descobriram como é viver num país normal. Várias etapas difíceis foram superadas, com idas e vindas, mas a direção geral parecia ser sempre a do progresso. Não mais. As medidas adotadas pelo governo Dilma colocaram o Brasil na rota da Argentina.

 
O processo de redução da inflação, retomada do crescimento e melhoria da distribuição da renda ocorreu em etapas. Entre o julho de 1994 e a desvalorização cambial de janeiro de 1999, a prioridade de curto prazo foi o rompimento dos mecanismos de propagação da inflação, o saneamento do sistema financeiro, a renegociação das dívidas estaduais; e a de longo prazo, as reformas estruturais destinadas a elevar a eficiência da economia, como as privatizações, a criação das agências reguladoras e a primeira reforma da Previdência. Mas a dificuldade política de se controlar as despesas primárias tornou o país dependente de juros elevadíssimos - Selic média de 20% ao ano acima do IPCA - para controlar a taxa de câmbio da qual dependia a estabilidade dos preços.
 
Após a desvalorização de 1999, FHC implantou duas de suas mais importantes reformas: o tripé macroeconômico - superávit primário elevado, câmbio flexível e regime de metas para a inflação - e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Com elas, a taxa real de juros caiu de 20% para 10%. A queda do salário real decorrente da desvalorização cambial, o aperto fiscal e o apagão de 2001 permitiram a Lula vencer as eleições de 2002. Para surpresa dos mercados, Lula e seu ministro Palocci deram continuidade à linha mestra de FHC, mantendo o tripé macroeconômico, bem como promovendo algumas reformas estruturais. Lula sabia que seu grande projeto de distribuição de renda seria inviabilizado caso a inflação voltasse.
 
Depois da queda de Palocci, com o mensalão fragilizando o governo, houve uma primeira mudança de rumo, com a suspensão de privatizações, mas prevaleceu a prudência fiscal. Durante os anos 2004-2008, a disparada dos preços das commodities exportadas pelo Brasil provocou a valorização do real, o que permitiu o controle da inflação com juros em queda. Em abril de 2008, o Brasil alcançou o grau de investimento concedido pelas agências internacionais de classificação de risco. Era o coroamento de 14 anos de esforços para tornar o Brasil um país normal. No período, o país conciliou rápido crescimento do PIB, inflação baixa, equilíbrio fiscal e superávit em transações correntes, algo só observado durante o milagre econômico de 1968-1973. Com a diferença de que essas proezas vieram acompanhadas de melhoria da distribuição de renda.
 
Mas a partir da crise do subprime de 2008, o diagnóstico de que a crise prenunciava a longamente esperada derrocada do capitalismo, abriu espaço para a ideologia intervencionista. A política fiscal tornou-se fortemente expansionista, e promoveu-se a mudança do marco regulatório do petróleo. Mediante gigantescos empréstimos do Tesouro, o BNDES passou a criar grandes empresas campeãs nacionais. Com a economia crescendo 8% no ano eleitoral de 2010, Lula elegeu sua ungida candidata.
 
Dilma ampliou o intervencionismo, limitando a liberdade do Banco Central, promovendo a expansão dos bancos públicos e mudando o regime de concessões. Com gastos sempre crescentes, o conceito de superávit primário foi descaracterizado, inicialmente com algum pudor, por meio do abatimento parcial dos investimentos no cômputo da despesa; depois com total desfaçatez, através da contabilidade criativa.
 
Mas a maior ameaça está na sabotagem da Lei de Responsabilidade Fiscal perpetrada pelo próprio Ministério da Fazenda (MF) que deveria zelar por seu cumprimento. Primeiro foi a contabilidade criativa. Depois o ardil que permitiu aos Estados gerarem caixa de curto prazo via captação de empréstimo no exterior para quitar dívida junto ao governo federal, conseguindo um período de carência, o que significa que o Estado deixa de abater dívida no período. Recentemente o MF passou dos limites, favorecendo o projeto de lei que recalcula retroativamente as dívidas estaduais e municipais junto à União, em flagrante descumprimento da LRF. Se aprovado pelo Congresso, esse PL abalará definitivamente a credibilidade cuidadosamente construída desde 1994.
 
A dívida bruta está em 64% do PIB segundo o FMI, ou 60% quando se excluem os títulos federais da carteira do Banco Central. A dívida líquida está em 34%, mas esse número não significa mais nada. Se a reação à crise do subprime tivesse sido outra, com preservação dos superávits primários, o desaquecimento da economia teria sido contrastado por uma política monetária muito mais agressiva, de acordo com o regime de metas. A taxa de juros, que atingiu o mínimo de 7,5% ao ano, teria caído muito mais, baixando o custo da rolagem da dívida doméstica, além de ter mantido o câmbio desvalorizado, o que teria evitado a enorme acumulação de (caríssimas) reservas internacionais.
 
Levando-se em conta os empréstimos do Tesouro aos bancos públicos, as desonerações tributárias, a taxa de juros acima do que teria vigorado caso a política fiscal anterior tivesse sido mantida, e a enorme acumulação de reservas, é provável que a dívida bruta estivesse 15% do PIB abaixo de seu valor atual. Nessas condições, o país estaria hoje recebendo uma nova promoção das agências de classificação, em vez de estar marcado para o rebaixamento.
 
O governo Dilma parece não ter compreendido que a queda dos juros reais brasileiros decorreu de uma longa construção institucional interna, ajudada por juros externos historicamente baixos. O rebaixamento da classificação de risco, com subsequente elevação dos juros, é agora questão de tempo.
 
Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso são professores da Escola de Pós-graduação em Economia (EPGE-FGV)

 



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