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A hora da calculadora

Veículo: O Globo
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Um período de apenas 15 dias não poderá mudar as tendências sociais. Poderia modificar certas porcentagens, mas não o prognóstico básico do que sucederá nas eleições presidenciais. Segundo pesquisa da Poliarquía, Cristina Kirchner vai se impor com margem ampla e inédita em 23 de outubro. A presidente sucederá a si mesma em dezembro; esta é a informação que já não pode ser modificada. Contudo, lhe será politicamente valiosa qualquer porcentagem adicional que possa acumular. Necessitará bater precedentes eleitorais históricos não só para governar, mas para pôr em macha alguns de seus audazes planos políticos.

Cristina Kirchner se prepara (ou se prepara seu entorno mais próximo) para iniciar em dezembro o rompimento de um cruel cerco marcado pela Constituição. Será o instante em que ela alcançará o vértice glorioso de sua vida política, mas também o momento em que iniciará seu declive. Impedida de aspirar a uma nova reeleição consecutiva, sem herdeiros políticos relevantes e à frente de um peronismo em busca desesperada de outro líder, a próxima luta épica do oficialismo será, segundo confirmaram importantes funcionários kirchneristas, o debate pela reforma da Constituição. Será uma necessidade, mais que um projeto, disseram no governo, e acrescentaram: a presença de Cristina nesta discussão deve ser descartada. Nunca será ela a defensora da reforma.

O debate, a discussão, a polêmica pela reforma. Esta será a primeira fase, necessária para frear as aspirações de sucessão do peronismo. A engenhosa fórmula de trocar marido e mulher para se esquivar da Constituição se esgotou com a morte de Néstor Kirchner. Sem Kirchner e sem reforma, os peronistas já têm mais pretendentes ao poder do que os não peronistas. Daniel Scioli, José Manuel de la Sota e Juan Manuel Urtubey estão esperando o 11 de dezembro (dia da posse) para pôr em marcha seus projetos presidenciais.

A segunda fase poderia ser a reforma em si mesma. Qualquer intenção de mudar a Constituição seria uma simples fantasia ou uma causa perdida de antemão se o oficialismo não contar com dois terços dos votos nas duas Casas do Congresso. Este é o requisito imposto pela própria Constituição para sua modificação. É uma ladeira muito íngreme.

A reforma necessitaria, portanto, de um acordo básico entre vários partidos para obter essa maioria especial.

A posição de Hermes Binner será fundamental nesse eventual cenário, porque ele será provavelmente o segundo candidato mais votado (ainda que a uma distância abismal da presidente) e porque sua coalizão tem posições reformistas. Nos opomos terminantemente à reeleição indefinida, assinalou Binner ante uma consulta de “La Nación”, embora assinalasse que sua aliança subscreve a necessidade de uma reforma constitucional que instaure um sistema parlamentarista.

O parlamentarismo também tem alguns adeptos no peronismo duhaldista; de fato, o próprio Duhalde está convencido de que o sistema presidencialista deve acabar na Argentina. Muitos da União Cívica Radical (UCR) são antigos admiradores do sistema parlamentar, que Raúl Alfonsín promoveu, com pouca sorte, na reforma que organizou com Menem em 1994.

Outro plano do kirchnerismo é a continuação do confronto com o jornalismo independente. De alguma maneira, este projeto está vinculado com a reforma, porque supõe que o antirreformismo terá sua maior repercussão na imprensa independente. Seja como for, a denominada batalha cultural, que é no fundo uma guerra contra a imprensa livre, é outro plano imediato do kirchnerismo. Também a oposição fez o trabalho necessário para o oficialismo. O projeto de uma deputada aliada a Binner, para declarar de interesse público a produção e a comercialização do papel de imprensa, poderia justificar uma rápida intervenção oficial na empresa Papel Prensa. Mais tarde, quando já a empresa não valha nada, poderão resolver as questões de propriedade e as indenizações.

O centro do problema não será nunca o ressarcimento das empresas, mas a situação de extrema debilidade em que ficarão os jornais argentinos. O governo administrará o fornecimento desse insumo indispensável, seja através da produção nacional, controlando a principal empresa produtora de papel, ou através da importação. O governo resolverá, em síntese, que diário terá que quantidade de papel e a que preço. O poder do Estado sobre o jornalismo independente cresceria, em tal caso, de maneira exponencial.

A cruzada reformista e a batalha contra o jornalismo poderiam servir ao governo, ademais, segundo sua própria estimativa, para saltar por cima de uma perspectiva certa: a repercussão local da crise econômica internacional. Poderia ser uma estratégia excessivamente politizada. A maioria das pessoas comuns não está ligada ao desenrolar de batalhas heroicas, mas à marcha de seus problemas econômicos. Por isso votará em Cristina e ao redor disso fará suas reivindicações.

China e Brasil estão estancando; não podem exportar agora mais do que faziam em 2008, ou seja, há três anos. A recessão, virtual e real, se avizinha na Europa. Esses são os três principais destinos das exportações argentinas. O preço da soja baixou 100 dólares no último mês. Significam 5 bilhões de dólares menos em exportações. A desaceleração do Brasil já provocou problemas em indústrias argentinas, como a automobilística e a têxtil. As fábricas de carros estão reprogramando sua produção local para um Brasil mais austero.

A fuga de capitais em setembro foi de uns 3,7 bilhões de dólares. O Banco Central não poderá tolerar esse ritmo indefinidamente. O orçamento do ano que vem necessitará de fundos adicionais entre 10 bilhões e 20 bilhões de dólares. As distintas linhas internas do governo não se puseram de acordo sobre a política que se deva aplicar. Nenhuma trará boas notícias, porque qualquer decisão significará a mudança da narrativa cristinista ou o sacrifício da enorme generosidade estatal.

O debate será outro. A épica política e a lenda cultural acabam quando a sociedade põe para funcionar uma calculadora.



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