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Não há vencedores numa guerra cambial

Veículo: O Estado de S. Paulo
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03 de novembro de 2010 | 0h 00
Joseph Stiglitz / THE GUARDIAN - O Estado de S.Paulo

Artigo


É fácil perceber por que alguns governantes esperam que taxas de câmbio favoráveis possam devolver a economia americana ao rumo certo.

Mas enfraquecer o dólar para incentivar as exportações é uma estratégia arriscada - pode resultar em volatilidade na taxa de câmbio e em protecionismo; pior, ela convida os concorrentes a responder. No frágil ambiente econômico global atual, uma guerra cambial transformará todos em perdedores.

Felizmente, existe uma alternativa. A cooperação global com base em medidas de reforma estrutural que ampliem o crescimento, o estímulo econômico e as transformações institucionais de longo prazo no sistema monetário global seriam muito mais eficazes.

Conhecemos os perigos da desvalorização porque já passamos por isto antes. Nos anos 30, medidas econômicas do tipo "prejudique o próximo" prolongaram a Grande Depressão. Em períodos mais normais, os Estados Unidos poderiam ser capazes de fazer com que outras moedas se valorizassem em relação ao dólar - ajudando assim a derrubar os preços das exportações americanas -, com a manutenção de juros baixos e a injeção de muita liquidez. Mas outros envolvidos, principalmente a China, sinalizaram que não pretendem jogar este jogo.

Os EUA precisam levar em consideração um outro rumo. A história nos instrui com exemplos. Quarenta anos atrás, uma medida unilateral americana levou à quebra do sistema de Bretton Woods e à adoção do regime cambial flutuante. Desde então, a economia foi marcada por crises sem precedentes. Agora o mundo se vê prestes a adotar outro regime de taxas de câmbio administradas e mercados de capitais fragmentados. Isto não é o resultado de extensas deliberações na tentativa de determinar qual sistema serviria melhor a todos. Em vez disso, é o resultado de certas medidas adotadas por certos países que acreditam agir apenas em benefício próprio, sem levar em consideração o destino de outros que fazem o que podem para se proteger.

A ironia é que os EUA estão ganhando pouco com a injeção de liquidez.

Mas as medidas estão afetando outros países, conforme o dinheiro barato corre o mundo em busca das melhores perspectivas. Sabemos o caos que pode ser provocado pelas idas e vindas desses recursos. Mudanças significativas e súbitas nas taxas de câmbio podem ter efeitos devastadores, especialmente nos países em desenvolvimento, conforme as empresas são levadas a pedir recuperação judicial. Os países em desenvolvimento têm sido os motores do crescimento mundial, e mudanças como essas poderiam aniquilar as esperanças de uma rápida recuperação global.

Enquanto o custo mundial das desvalorizações competitivas está claro, seus benefícios podem ser ilusórios. A China está certa ao afirmar que o ajuste de sua taxa de câmbio terá pouco impacto sobre o déficit comercial multilateral dos EUA - os americanos passarão simplesmente a importar eletrônicos e têxteis de outros países em desenvolvimento. Com efeito, no curto prazo o déficit comercial americano pode até piorar.

Atualmente cada país busca avançar os próprios interesses. Os EUA se preocupam com o desemprego. A China se preocupa com a possibilidade de uma desordem econômica provocada por uma ampla valorização da sua moeda.

Se insistirmos neste rumo, as economias emergentes - sentindo-se ameaçadas por uma ofensiva de capital - vão se proteger por meio da taxação, dos controles de capital, regimes de regulação e intervenções diretas. No fim, a ideia de taxas de câmbio determinadas pelo mercado parecerá tão arcaica quanto Bretton Woods. O resultado será um mercado financeiro global cada vez mais fragmentado, o que quase inevitavelmente provocará ondas de protecionismo.

A resposta para este impasse aparente é simples: se o crescimento global for retomado, a valorização das moedas será uma consequência natural. Para que o crescimento seja restaurado, todos os governos com capacidade de expandir a demanda agregada terão de fazê-lo. Os EUA têm uma responsabilidade especial, tanto por causa do papel que desempenharam na criação da crise mundial quanto por causa de sua capacidade de tomar empréstimos a juros baixos, vantagem que deriva parcialmente do fato de o país ser o dono, na prática, da moeda das reservas estrangeiras. É hora de os EUA fazerem os investimentos de alta produtividade dos quais tanto necessitam. Isso acabaria melhorando a situação do balanço patrimonial americano. Um crescimento maior também proporcionaria uma maior arrecadação fiscal e levaria à redução da dívida nacional no longo prazo.

Tanto os EUA quanto a China precisam de mudanças estruturais, e não apenas de um realinhamento de suas taxas de câmbio. Mesmo no curto prazo, há muito que esses países podem fazer para contribuir com a demanda agregada global: aumentar os salários, por exemplo. Ambos precisam de investimentos para se adaptar ao aquecimento global. Ambos precisam de um maior volume de gastos públicos na educação e na saúde para os pobres.

Essa alternativa repousa na cooperação - compromissos mútuos com a expansão fiscal, com as reformas estruturais e a correção dos desequilíbrios comerciais por parte de todos os países (não apenas a China). Para alguns, o realinhamento das taxas de câmbio será parte deste processo; para outros, talvez não. Mas cada país vai determinar a melhor maneira de atingir as metas definidas, dedicando a devida atenção aos impactos externos positivos e negativos.

Um novo sistema global de reservas ou uma expansão do chamado "dinheiro" do FMI (os SRDs, ou direitos especiais de saque) serão centrais para esta abordagem cooperativa. Num sistema como esse, países pobres não seriam mais obrigados a gastar centenas de bilhões de dólares para se proteger da volatilidade global, e esse dinheiro seria acrescentado à demanda agregada global.

O mundo se encontra numa injunção crítica. O rumo em que nos encontramos atualmente é marcado pela instabilidade contínua e pelo crescimento anêmico. O rumo cooperativo é melhor para todos. É, na verdade, a única maneira por meio da qual seremos capazes de reduzir significativamente os desequilíbrios globais e restaurar um crescimento mundial robusto. / TRADUÇÃO AUGUSTO CALIL

O AUTOR É ECONOMISTA GANHADOR DO PRÊMIO NOBEL


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