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China busca alternativa no mercado interno

Veículo: Valor Econômico
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Cristiano Romero |
13/10/2010

Por causa da crise mundial, a demanda por produtos chineses diminuiu bastante. Para compensar esse fato, a China tomou três providências - aumentou os investimentos em infraestrutura; ampliou o regime previdenciário; iniciou mudanças no sistema de saúde, com a ambição de torná-lo universal até 2020. São boas notícias para o povo chinês e também para o mundo.

As duas últimas medidas se destinam a criar uma rede de proteção social. O propósito é estimular a população a consumir mais agora, no presente, em vez de poupar para o futuro. Se conseguir fazer isso, o governo aumentará a demanda interna, reduzindo a dependência da China do consumo do resto do mundo.

Não é uma tarefa simples. O hábito de poupar dos chineses é tão arraigado quanto o dos americanos e brasileiros de consumir. Curiosamente, informam os economistas Steve Barnett e Nigel Chalk no último número da revista "Finance & Development" do Fundo Monetário Internacional (FMI), na China os jovens e velhos são os que mais poupam, justamente o oposto do que ocorre nas economias avançadas. O principal incentivo à poupança é o temor de que o custo de vida e os gastos com saúde aumentem de forma excessiva, prejudicando a vida na velhice.

Gigante começa a construir rede de proteção social

Por trás desse temor, está uma dura realidade: o regime previdenciário e o sistema de saúde chineses não oferecem segurança ao cidadão. No primeiro caso, prevalece um sistema "fragmentado e complexo", nas palavras de Barnett e Chalk. O regime cobre parcela pequena da população e não oferece uma boa assistência para quem depende dele. As regras variam de província a província, entre população rural e urbana e mesmo entre as classes profissionais.

O governo adotou recentemente um sistema para a população rural que prevê o pagamento de pensão mensal entre 60 yuans (R$ 14,97) e 300 yuans (R$ 74,85) - no Brasil, o benefício médio pago pelo INSS é superior a R$ 600. No caso das aposentadorias urbanas, as regras antigas não previam a portabilidade do benefício, ou seja, um trabalhador só podia se aposentar na província para a qual contribuiu durante a vida laboral. O governo está tentando retirar essa restrição, inclusive, para permitir a mobilidade da força de trabalho
dentro do território chinês. Apesar das mudanças promovidas depois da crise, "há muito ainda a ser feito", afirmam os economistas do FMI.

Na área de saúde, o governo trabalha numa agenda ambiciosa para, até o fim de 2011, cobrir 90% da população chinesa com alguma forma de seguro-saúde. Paralelamente, há um esforço para oferecer serviços de saúde à população rural e reduzir os custos desses serviços. No prazo de três anos, serão construídos 29 mil centros de saúde e dois mil hospitais. O governo pretende treinar 1,4 milhão de profissionais para atuar nesses centros e hospitais.

Se a prometida rede de proteção social se materializar, os chineses não precisarão mais poupar tanto quanto fazem hoje. Isso aumentará o consumo interno e a demanda por produtos importados. A China diminuirá a taxa de poupança. Haverá, a longo prazo, tendência de apreciação do yuan, o que, por sua vez, ajudará a reequilibrar o comércio mundial e os valores relativos das moedas.

Em 2007, a taxa de poupança da China foi a 52% do PIB. As famílias responderam pela maior fatia - 22% do PIB. As empresas pouparam o equivalente a quase 20% do PIB e o governo, cerca de 10% do PIB. No Brasil, a poupança total é bem menor que a das famílias chinesas - 15% do PIB em 2009. A média dos últimos cinco anos foi de 17,6%, face à média de 52% do PIB obtida pela China entre 2005 e 2008.

Com baixa poupança, a economia brasileira é obrigada a importar capitais para financiar o crescimento. Este processo aprecia a taxa de câmbio. Aqui, como se sabe, o governo não ajuda porque, em vez de gastar menos do que arrecada, contribui negativamente para a poupança do país - no ano passado, o déficit público chegou a 3,3% do PIB.

A verdade é que, se realmente levar adiante seus projetos de reforma previdenciária e do sistema de saúde, a China tende a se transformar, com o tempo, numa economia que, a exemplo de quase todas as outras, tem custos para crescer - o Brasil, por exemplo, gasta 13% do PIB apenas com previdência e assistência social. As mudanças tornarão os produtos chineses menos competitivos.

A dúvida é saber se a criação de um gigantesco mercado de consumo para 1,3 bilhão de chineses não exigirá mudanças profundas no sistema político. A China mantém um regime totalitário que restringe até o acesso da população à Internet. Isto explica os baixíssimos salários pagos ainda hoje a seus trabalhadores, a inexistência de um regime de previdência social e de um sistema de saúde decentes, a ausência de direitos trabalhistas, etc.

O Brasil, ao contrário, é uma democracia que, a partir de um pacto político (firmado na Constituição de 1988), criou uma importante rede de proteção social e, recentemente, passou a incluir cada vez mais cidadãos no mercado de consumo, além de oferecer, de há
muito, direitos trabalhistas tão ou mais generosos que o de vários países de economia avançada. Tudo isso, evidentemente, tem um custo. Comparações entre o modelo chinês e o brasileiro soam, portanto, risíveis, se não levarem em conta os aspectos mencionados, especialmente, os de natureza política.

Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras.


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