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Chineses redefinem a etiqueta "Made in Italy"

Veículo: Folha de S. Paulo
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Por RACHEL DONADIO

PRATO, Itália - Ao longo dos anos, a Itália aprendeu a difícil lição de que não podia competir com os preços da China. Então sua classe empresarial sonhou que a Itália venderia qualidade, e não quantidade. Durante séculos, esta cidade medieval murada, próxima de Florença, produziu alguns dos tecidos mais finos do mundo, tornando-se uma locomotiva do refinamento "Made in Italy". Então a China chegou.
Trabalhadores chineses imigrantes, primeiro alguns poucos, depois dezenas de milhares, começaram a se instalar em Prato no final da década de 1980. Eles transformaram o pólo têxtil em uma capital das confecções baratas -enriquecendo muitos, atiçando ressentimentos e provocando batidas policiais que causaram gritos de preconceito e hipocrisia.
A cidade abriga a maior concentração de chineses na Europa -alguns legais, muitos outros não. Aqui, no coração da Toscana, os trabalhadores chineses trabalham 24 horas em cerca de 3.200 empresas que fabricam roupas, sapatos e acessórios baratos, muitas vezes com materiais importados da China, que são vendidos por preços médios em varejistas de todo o mundo.
Aproveitando a fraqueza das instituições da Itália e sua alta tolerância à flexibilização das regras, os chineses borraram a diferença entre "Made in China" e "Made in Italy", prejudicando o renome da Itália e sua capacidade de comercializar produtos exclusivos, de alto nível.
Parte do ressentimento é cultural: o ambiente italiano clássico da cidade está dando lugar a um de Chinatown. Mas o que parece irritar mais alguns italianos é que os chineses os estão superando em seu próprio jogo -evasão fiscal e maneiras brilhantes de navegar pela notoriamente complexa burocracia italiana- e criaram um novo setor próspero, embora amplamente subterrâneo, enquanto muitas empresas de Prato faliram.
O resultado é uma mistura tóxica de temores residuais sobre a imigração e a economia. "Este pode ser o futuro da Itália", disse o comissário de Cultura da província de Prato, Edoardo Nesi. "A Itália deve prestar atenção aos riscos."
A situação saiu cada vez mais do controle das autoridades fiscais e de imigração. Segundo o Banco da Itália, os chineses residentes em Prato remetem cerca de US$ 1,5 milhão por dia para a China, principalmente os ganhos do comércio de roupas e tecidos. Lucros dessa magnitude não estão aparecendo nos registros fiscais, e algumas autoridades dizem que os chineses preferem repatriar seus lucros a investi-los no local.
As tensões estão elevadas desde que as autoridades italianas intensificaram nesta primavera as batidas nas oficinas que usam mão-de-obra ilegal, e mais ainda quando promotores italianos prenderam 24 pessoas e investigaram cem empresas na região de Prato no final de junho.
As acusações incluíam lavagem de dinheiro, prostituição, falsificação e classificação de produtos estrangeiros como feitos na Itália.
Muitos chineses estão ofendidos diante da ideia de que eles arruinaram a cidade, dizendo que ajudaram a resgatar Prato da irrelevância econômica. "Se os chineses não tivessem ido para Prato, haveria a moda 'pronto'?", perguntou Matteo Wong, 30, que nasceu na China, foi criado em Prato e dirige um escritório de consultoria para imigrantes chineses (moda "pronto" significa moda rápida). "Os chineses tiram empregos dos italianos? Ao contrário, eles trouxeram muitos empregos para os italianos."
Nos últimos meses, Prato tornou-se um ponto de disputa diplomática. Autoridades italianas dizem que o governo chinês ainda não fez o suficiente para abordar a questão dos imigrantes ilegais e estão tentando um acordo com a China para identificar e deportar os ilegais. As autoridades italianas dizem que Prato deverá estar na agenda quando o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, visitar Roma em outubro.
Muitos imigrantes ilegais chineses chegam de ônibus vindos da Rússia ou dos Bálcãs, e destroem seus passaportes ou os dão para grupos de crime organizado que ajudam a trazê-los. Muitos outros ficam além do prazo permitido por seus vistos turísticos.
Segundo a Câmara de Comércio de Prato, o número de empresas têxteis de propriedade italiana registradas na cidade caiu pela metade desde 2001, para pouco menos de 3 mil -200 a menos do que as que hoje são propriedade de chineses, quase todas no setor de confecção. Outrora uma grande produtora e exportadora de tecidos, hoje Prato responde por 27% das importações italianas de tecidos da China.
O ressentimento está acirrado. "Você vê alguém de Prato com dois filhos desempregados, e quando um chinês passa dirigindo uma Porsche ou Mercedes comprada com dinheiro ganho na exploração ilegal de trabalhadores imigrantes, é um clima arriscado", disse Domenico Savi, o ex-chefe de polícia de Prato que deixou o cargo em junho.
Segundo o gabinete do prefeito de Prato, existem 11.500 imigrantes legais chineses, em uma população de 187 mil. Mas a prefeitura estima que a cidade tenha mais 25 mil imigrantes ilegais, na maioria chineses.
Uma técnica comum que os chineses usam para abrir uma empresa, muitas vezes com a ajuda de contadores e advogados italianos, é fechá-la antes que a polícia fiscal as apanhe, e depois reabrir o mesmo local de trabalho com um novo registro fiscal.
Li Zhang, dono de uma loja de roupas que imigrou para a Itália em 1991, e centenas de outros chineses estão no centro da chamada economia cinzenta de Prato. Suas empresas são parcialmente acima da superfície, porque pagam impostos, e parcialmente subterrâneas, porque contam com oficinas terceirizadas que muitas vezes usam mão-de-obra ilegal. Desde que abriu sua loja em 1998, Zhang disse que exportou roupas para 30 países, incluindo China, México, Venezuela, Jordânia e Líbano.
As batidas policiais, segundo ele, estão prejudicando os negócios e perturbam a comunidade chinesa a ponto de que muitos trabalhadores passaram a se esconder. "As pessoas estão com medo", disse Zhang.
Grande parte do endurecimento vem do novo prefeito de Prato. Em 2009, a cidade tradicionalmente de esquerda elegeu seu primeiro prefeito de direita na era pós-guerra, Roberto Cenni.
"Como a China pode deixar uma marca como esta na UE?", perguntou o prefeito. "Barulho, maus hábitos, prostituição. As pessoas não conseguem mais viver. Estão cansadas disso."
Mas as batidas policiais não vão muito longe. No primeiro semestre deste ano, as autoridades vasculharam 154 empresas de propriedade chinesa -das mais de 3 mil. E no início deste ano várias autoridades foram presas sob a acusação de ter aceitado propina em troca de vistos de residência.


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