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A arriscada partida de Brasil e Argentina

Veículo: Valor Econômico
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    Sergio Leo
    05/07/2010
Texto: A- A+
   
Colunista

Despreparados para as derrotas que, dias depois, expulsariam da África do Sul os times do Brasil e da Argentina, os ministros de Relações Exteriores dos dois países, Celso Amorim e Hector Timerman, até fizeram gracinhas sobre a Copa do Mundo, ao falar à imprensa, no intervalo da longa reunião que mantiveram na semana passada, com direito a jantar na segunda parte. Timerman, depois, se queixaria em sua página do Twitter de que falou com Amorim sobre "Mercosur, narcotráfico, Malvinas, cooperação nuclear, Oriente Médio, G-77, Unasul", mas que jornais argentinos só citaram o futebol.

Culpa dos ministros, que, na entrevista de 13 minutos em Brasília, falaram muito de bola e foram evasivos ao comentar as conversas reservadas que tiveram. Timerman deixou ótima impressão nos diplomatas brasileiros, ao mostrar, nessas conversas, disposição em trabalhar "pelo Mercosul". Mas, mesmo a quatro paredes, falaram generalidades, como admitiu o próprio Amorim ao contar que mencionaram temas de interesse comum "apenas como título de assuntos" que tratariam depois. Brincaram o jogo do contente, fingindo não ver problemas que estão na cara de todos.

Em comércio internacional, como no futebol, há regras obrigatórias e há as malandragens que escapam à vigilância dos árbitros. No campo da infeliz Copa de 2010, o gol de braço de Luís Fabiano foi uma malandra versão brasileira para a famosa "mano de Diós" com que Maradona marcou ilegalmente um tento contra a Inglaterra em 1986. Nas alfândegas do Mercosul, neste ano, a prática argentina de atrasar a liberação de bens importados, como instrumento de controle das contas externas, só deixou de ser escancarada quando os brasileiros começaram a praticar contra mercadorias argentinas o mesmo tipo de infração às regras do jogo. Não é uma partida bonita de se ver.

Em maio, o polêmico secretário de Comércio argentino, Guillermo Moreno, decidiu mais uma vez aplicar um cambalacho sobre plateia, árbitros e bandeirinhas, ameaçando oficiosamente perseguir empresas de varejo que importassem bens fabricados na Argentina. A ameaça, segundo industriais brasileiros, levou ao cancelamento de cerca de 25% de encomendas já feitas a fábricas no Brasil, especialmente de alimentos. Os brasileiros queixaram-se; a presidente Cristina Kirchner negou a ameaça de Moreno e as restrições teriam sido retiradas. Empresários brasileiros ainda reclamam, porém; e, embora neguem aos jornais, autoridades do Brasil têm apresentado listas de atritos comerciais aos argentinos.

O governo brasileiro costuma minimizar os atritos, lembrando que bem menos de 10% do comércio bilateral são sujeitos a barreiras no país vizinho e que temos mais de US$ 1,1 bilhão de superávit com os argentinos. Esse argumento é ligeiramente míope. Na verdade, parcela gigantesca do bem sucedido comércio entre Argentina e Brasil se deve à indústria automotiva, que absorveu algo acima de 40% das exportações brasileiras ao mercado argentino. Da Argentina ao Brasil, a parcela é ainda maior. Conformar-se com o alcance ainda pequeno das restrições comerciais na Argentina é enviar sinal ambíguo às empresas do Mercosul e perpetuar essa elefantíase automotiva.

A incerteza sobre as regras faz com que exportadores relutem em entrar no campo argentino, e já começa a minar as chances de expansão comercial para além da região. A União Europeia, que tem problemas próprios - especialmente os franceses - para abrir seu mercado ao bloco sul-americano, potência em matéria agrícola, encontrou nas barreiras informais argentinas o pretexto contra um acordo de livre comércio entre os dois blocos.

O Brasil evita pressões

muito fortes sobre os argentinos, teme exacerbar na vizinhança rancores e resistências à natural expansão do país de seu poderio econômico, já visível pela compra de importantes empresas argentinas nos setores de carne, bancos e têxteis. O mesmo receio faz com que ignore apelos do Uruguai para ajudar a fiscalizar a disputa daquele país com a Argentina, pela instalação de fábricas de pasta de celulose no rio Uruguai, fronteira bilateral. Timerman evitou o assunto em Brasília, mas deixou claro querer o Brasil longe do tema.

A crença no futebol pátrio fez com que os ministros argentino e brasileiro até garantissem em Brasília que era 50% certo que um time do Mercosul ganharia a Copa. No terreno comercial, também há otimismo: Argentina parece acreditar que algumas faltas no caminho serão compensadas, em longo prazo, pela aquisição de capacidade industrial; no Brasil, imagina-se ser tempo perdido confrontar o governo Kirchner e que a política heterodoxa do vizinho pode ser administrada para evitar excessos e será ajustada como tempo (ou pela mudança de governo).

É grande o risco de que a autoconfiança nos dois governos leve ambos a cometer erros de avaliação não só sobre futebol, mas também em seus próprios campos de atuação.

Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras

E-mail: sergio.leo@valor.com.br



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