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O crime de descaminho e a visão do STJ

Veículo: Valor Econômico
Seção: Opinião Jurídica
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    Rogério Fernando Taffarello
    04/08/2009
 
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O artigo 334 do Código Penal estatui, em seu caput, a seguinte descrição de crime: "importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria", atribuindo-lhe pena de reclusão de um a quatro anos. A redação legal abrange, conforme consta em sua rubrica, igualmente os crimes de contrabando e de descaminho - o primeiro em sua primeira parte (importação ou exportação de mercadoria proibida), e o segundo em sua segunda parte (sonegação de imposto devido em operação de comércio exterior). Trata-se de crimes de diferentes naturezas, que, no entanto, têm em comum o fato de sua prática ocorrer em operações de trânsito de mercadorias através das fronteiras nacionais.

Durante muitos anos, esse fato, aliado à circunstância de ambos os delitos serem previstos no mesmo artigo do Código Penal - em seu título XI, atinente aos crimes contra a administração pública -, ensejou uma grave confusão interpretativa quanto à natureza jurídica do descaminho, a qual ainda é notada em grande parte dos juízos federais e dos tribunais regionais federais (TRFs) do país. Isso porque o descaminho veio a ser tido como crime contra a administração, em sua vertente interesse econômico-estatal sobre o controle, por meio da tributação, da entrada e saída de mercadorias do país. Assim foi que se negou ao descaminho sua identidade com os crimes contra a ordem tributária, e, por consequência, também se lhe negou o tratamento por eles merecido quanto à necessidade de prévio esgotamento da via administrativa para que haja justa causa para a persecução criminal ou quanto à extinção da punibilidade após o pagamento do tributo devido.

A doutrina penal, todavia, não deixou de apontar a imanente natureza fiscal do crime de descaminho, algo que, em meados de 2007, finalmente viu-se reconhecido pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do Habeas Corpus nº 48.805, de São Paulo. Na ocasião, prevaleceu o percuciente voto da relatora, ministra Maria Thereza de Assis Moura, que propôs uma modificação no entendimento da corte ao afirmar a inexistência de uma razão lógica para se tratar o descaminho diversamente dos demais crimes tributários - reconhecendo, então, a extinção da punibilidade na hipótese concreta, em que houvera a extinção do crédito tributário pelo pagamento.

Deveras, não há sentido em crer-se que o bem jurídico tutelado pelo descaminho é outro senão o interesse arrecadatório do fisco sobre operações de importação ou exportação. Em primeiro lugar, há que se considerar que a sua própria redação típica nuclear ("iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto") equivale-se àquela do crime de sonegação fiscal por excelência, inscrito no artigo 1º da Lei nº 8.137, de 1990 ("suprimir ou reduzir tributo"). Ademais, a ideia de que o interesse econômico-estatal que se tenciona proteger no descaminho repousa mormente na proteção do parque industrial nacional fragiliza-se ante o fato de que a política tributária interna também apresenta variações segundo interesses extrafiscais, e, ainda, parece esquecer-se da ocorrência de crimes contra a ordem econômica no ordenamento jurídico-penal brasileiro.

Não obstante, o argumento meramente topográfico-legalista - que ainda subsiste com força em nossa jurisprudência mais conservadora -, segundo o qual o descaminho não teria natureza tributária porquanto está previsto no título do Código Penal que cuida dos crimes contra a administração pública, não resiste a duas constatações. De um lado, sabe-se que a ordem tributária não mereceu capítulo próprio no codex pois ainda não era, em 1940, objeto de especial preocupação do legislador na seara penal, sendo que a sonegação fiscal somente veio a tornar-se delito com o advento da Lei nº 4.357, de 1964, e da Lei nº 4.729, de 1965, ora suplantadas pela Lei nº 8.137, de 1990. De outro, cabe assinalar que a atual redação do artigo 334 do Código Penal foi determinada precisamente pela Lei nº 4.729 - então, a lei de sonegação fiscal existente no país.

Desta maneira, após o paradigmático julgamento suprarreferido, prosseguiu o STJ, por sua sexta turma, a afirmar e reafirmar a natureza fiscal do crime de descaminho, ainda que em decisões apenas majoritárias, nos julgamentos do Recurso em Habeas Corpus nº 19.174, do Rio de Janeiro, e do Habeas Corpus nº 109.205, do Paraná. E, visto que o princípio constitucional da isonomia impede a atribuição de consequências diferenciadas a situações jurídicas substancialmente similares, determinou-se, em ambos os casos, o trancamento das correspondentes ações penais face à ausência de lançamento definitivo dos tributos que lhes concerniam. Verifica-se, então, uma recente e louvável tendência da corte superior no sentido de conferir maior justeza, racionalidade e segurança jurídica no processamento de crimes de descaminho, ao encontro daquilo que a doutrina mais abalizada postula já há algum tempo.

É de se ver, porém, que, salvo exceções isoladas, os TRFs do país ainda seguem decidindo conforme a antiga orientação, muitas vezes insistindo em não reconhecer a natureza tributária do descaminho simplesmente por sua localização no ordenamento estar apartada da lei dos crimes de sonegação fiscal - equívoco interpretativo que impõe desperdício de recursos públicos e privados materializado em desnecessários recursos especiais e ações de habeas corpus ajuizados em favor de contribuintes irresignados. Espera-se, pois, que não tardem a observar corretamente os mais modernos precedentes do STJ a respeito, não apenas por sua hierarquia jurisprudencial sabidamente superior, mas, e sobretudo, pela assimilação e aquiescência ao rigor argumentativo do novo posicionamento da corte na matéria.

Rogério Fernando Taffarello é mestre em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP), professor de direito penal das universidades Veris Metrocamp (graduação) e Unimep (pós-graduação) e advogado em São Paulo

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações



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