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Uruguai atrai capital argentino em fuga

Veículo: Valor Econômico
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Mercosul: Governo uruguaio busca rever imagem de paraíso fiscal, mas crise faz dólares cruzarem o Rio da Prata

 

AP
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Os presidentes Tabaré Vázquez, do Uruguai, e Cristina Kirchner, da Argentina

Com a fuga de capitais já ultrapassando os US$ 43 bilhões desde 2007, o governo argentino se esforça para "tapar os buracos" por onde sai o dinheiro do país. As ações, envolvendo o Banco Central, a Afip (a Receita Federal argentina) e a CNV (a Comissão de Valores Mobiliários), se intensificaram neste ano com resultados mínimos. Nesta luta, um dos principais adversários do governo argentino é o vizinho Uruguai, para onde segue boa parte do dinheiro tirado do país pelos argentinos.

Calcula-se que pessoas físicas e jurídicas tenham US$ 150 bilhões fora do país, espalhados em contas bancárias e investimentos em todo planeta. É um valor bem maior que o de seis anos atrás, quando houve a grande crise de 2002. Naquele ano, o volume expatriado foi estimado em US$ 101 bilhões. Há uma parte do dinheiro retirado do controle oficial que nem saiu do país, ficou guardado em cofres nos bancos locais ou no que aqui se conhece como "colchón bank", ou seja, "debaixo do colchão", modo de dizer "em casa". Estima-se que há perto US$ 30 bilhões guardados em cofres, porém ninguém sabe o valor exato. O Banco Central não tem controle dos cofres bancários, que são considerados serviços e não são regulados, disse ao Valor a assessoria de imprensa do BC argentino.

As cifras são muito maiores que os US$ 43 bilhões, já que este é o valor de recursos sobre os quais a autoridade monetária tem controle, ou seja, não considera o mercado paralelo. Praticamente metade daquele total, segundo o BC, saiu pela compra direta e legal pelas casas de câmbio autorizadas a operar; a segunda maior parte, cerca de US$ 12,5 bilhões, saiu por transferência autorizada a bancos no exterior. Outros US$ 10 bilhões se dividem entre depósitos em moeda estrangeira nos bancos locais e operações no mercado de capitais.

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O desvio de dinheiro da Argentina para o Uruguai vem crescendo. De acordo com dados do Banco Central do Uruguai (BCU), os depósitos de não-residentes no país correspondem a 20% dos depósitos bancários totais no sistema bancário privado. Técnicos do BCU informam que entre 85% e 90% dos depósitos de não-residentes são de argentinos e de 5% a 10% são de brasileiros.

O crescimento dos depósitos de não residentes se acelerou do ano passado para cá como efeito da deterioração do clima político na Argentina. Começou com a disputa entre o governo e os agricultores por causa de um decreto que aumentou a tributação sobre as exportações de grãos - que paralisou o país por cinco meses até que o decreto foi derrubado no Congresso. No fim do ano, com a estatização dos fundos de pensão, mais dinheiro atravessou o Rio da Prata.

Nos 12 meses que antecederam junho de 2009, os depósitos de não-residentes nos bancos uruguaios aumentaram quase 40%, contra um avanço de 18,5% no mesmo período do ano anterior. Essa foi a resposta dos argentinos à ameaça do casal Néstor e Cristina Kirchner, que governa o país desde 2003, de que, se perdessem as eleições legislativas de 28 de junho, o voltaria o caos da crise de 2002. Por fim, eles perderam as eleições, mas o "caos" de que eles falaram ainda não se materializou.

Obviamente, não são apenas as pessoas físicas que tiram dinheiro em massa do país: a Afip está investigando 2.200 grandes empresas de mais de 60 setores por subfaturamento de exportações por meio de paraísos fiscais. O titular da Afip, Ricardo Etchegaray, explicou durante um seminário realizado em maio, em Buenos Aires, que essas empresas registram exportações fisicamente na Europa, EUA, Japão, mas faturam em países como Uruguai, Ilhas Cayman e Luxemburgo que, segundo ele, "resistem a dar informação".

Segundo um advogado argentino que pediu para não ser identificado, investidores pessoas física e jurídica se utilizam de um instrumento previsto na lei uruguaia que é a Sociedade Anônima Financeira de Investimento (Safi), uma entidade que não é obrigada a identificar os sócios, sendo portanto um veículo perfeito para evasão de impostos e divisas de argentinos no Uruguai.

Levar dinheiro para a outra margem do Rio da Prata não é nenhuma novidade, ao contrário, é um clássico de mais de 40 anos. Diariamente, grande quantidade de argentinos que viaja de Buenos Aires a Montevidéu, seja de carro, avião ou barco, leva na bolsa dinheiro para depositar em algum banco uruguaio. Entre os cidadãos de classe média e alta que preferem guardar seu dinheiro longe do alcance do governo argentino, muitos têm imóveis em território uruguaio, o que legitima ainda mais suas operações. Os muito ricos têm casas e apartamentos no balneário de Punta Del Este ou nas praias próximas e também têm negócios e investimentos em hotéis, cassinos e no agronegócio uruguaio.

Outro caminho é via mercado de capitais. Através de uma operação muito comum na City portenha, conhecida como "(contado) à vista com liquidação", investidores compram legalmente, em pesos, nos bancos e corretoras, títulos públicos e privados (ações e bônus) locais que tenham cotação em dólar e sejam negociados em outras praças como Nova York e Madri. Os papéis mais procurados para essa finalidade são os títulos do tesouro argentino Boden 2012, em dólares, e "Discount", em pesos, e ações de empresas multinacionais como as do grupo Techint e Telecom Argentina. Num segundo momento, os papéis são vendidos no exterior em dólares e o dinheiro é depositado em outro país, na Europa, nos Estados Unidos ou em algum paraíso fiscal.

Para fechar essa brecha, em maio a CNV determinou, através da Resolução 544, que as corretoras de valores e demais participantes na intermediação de títulos só podem realizar operações dentro do âmbito da oferta pública quando estas sejam efetuadas ou ordenadas por pessoas constituídas, domiciliadas ou residentes em jurisdições que não seja, classificadas pelas leis internas como paraísos fiscais. E, mesmo que o local não seja um paraíso fiscal, deve estar sujeito à fiscalização de um órgão que mantenha algum memorando de entendimento, cooperação e intercâmbio de informação com a CNV. Outra medida foi obrigar os investidores a segurarem papéis adquiridos na bolsa local por pelo menos 72 horas antes de revendê-los.

A última tentativa de fechar o cerco à saída de capitais (impostos e divisas estrangeiras) foi dificultar a venda no varejo - que, aliás, já não é muito fácil pelos limites individuais e a burocracia. A partir de setembro, para comprar moeda estrangeira em qualquer casa de câmbio, será exigido que o comprador comprove renda suficiente, não apenas com um contracheque, mas pela declaração anual do Imposto de Renda apresentada à Afip. Esse dado será comprovado "on-line", através da base disponível na página da Afip na internet.

Quando se apresentar ao balcão da casa de câmbio, o comprador terá que apresentar seu DNI, equivalente ao RG brasileiro, e o CUIT/CUIL, o CPF argentino. Ao digitar os números no computador, a casa de câmbio vai informar o valor pedido e a Afip vai responder, com base nas informações da declaração anual, se o comprador pode ou não levar a quantia que está pedindo.

Para Arturo Piano, diretor do Banco Piano, a medida só vai atrapalhar o negócio de câmbio no varejo, que representa apenas 1% dos negócios de câmbio no país. "As pessoas comuns não têm acesso a contas no exterior e é insignificante para o movimento de câmbio do país", diz o empresário. O Banco Piano é o que mais faz operações de câmbio na Argentina: 120 mil a 140 mil operações mensais. Para Arturo Piano, a única medida para frear a fuga de capitais é um "choque de confiança, que hoje este país não tem". Não seria nada simples, admite, nem poderia ser uma única ação. "A lista é longa: teria que reabrir o diálogo com o campo, mas um diálogo que seja construtivo de fato e não o que tem os visto ultimamente, que começa e não se concretiza. Teria que acertar as contas com os "hold outs" (investidores internacionais detentores de bônus que não entraram na renegociação da dívida de 2005) e com o Clube de Paris; retomar as relações com EUA e melhorar com nossos vizinhos do Mercosul".



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