Notícias

Grifes de luxo na Europa agora são “made in China”

Veículo: Estado de são Paulo
Seção: Economia
Página: B5

Ao se decidir pela compra de traje Hugo Boss ou de sapato Gucci na loja da marca em Paris ou Milão, o cliente se propõe a pagar caro em troca de qualidade e estilo, mas também da imagem de luxo e riqueza atrelados à grife e à sua procedência - o “Made in France” ou “Made in Italy”. Cada vez mais, no entanto, o consumidor que adquire roupas, relógios e jóias de alto preço nas capitais da moda correrá o risco de ser surpreendido por etiquetas bem menos glamourosas, como as “Made in China”. Depois dos bens de consumo duráveis, como automóveis e eletroeletrônicos, a globalização está afetando a geografia da produção de vestuário e de acessórios de luxo na França, na Itália e na Suíça. Os países beneficiados são, entre outros, a Hungria, a Romênia, o Marrocos, a China e Taiwan. A constatação faz parte da pesquisa O Deslocamento no Luxo: qual seu efeito sobre o "Made in", realizada por Maxime Koromyslov, pesquisador da Universidade de Nancy, na França. O levantamento, que surpreendeu consumidores no país e intimidou empresários do setor, aponta que Hugo Boss, Lancel, Longchamp Paris e Céline, na França, e Valentino, Armani e Gucci, na Itália, são exemplos de marcas que estão transferindo parte das linhas de produção para países do terceiro mundo em troca de mão-de-obra barata, legislações de trabalho mais frágeis, impostos reduzidos e fácil acesso à matéria-prima. Nada inovador no capitalismo - empresas como General Motors e Sony fabricam produtos nos diversos continentes -, mas um verdadeiro atentado no que diz respeito à moda. Por definição, produtos de luxo são aqueles que apresentam oito características básicas: têm qualidade irrepreensível, são caros, raros, belos, supérfluos, atemporais, guardam tradição de produção e são objetos de desejo. Na percepção do consumidor, explicou Koromyslov ao Estado, tal nível de exigência está associado a países desenvolvidos, onde as marcas preservam seus ateliês e savoir-faire e permitem o consumo para apenas uma fatia seleta de público. Ocorre que, com a transferência para países em desenvolvimento, parte das características dos produtos de luxo acaba comprometida: o rigor com a qualidade pode não ser o mesmo, a raridade é posta sob suspeita pela pirataria e a tradição artesanal se perde em uma linha de montagem. SENSAÇÃO DE LOGRO Caem por terra justificativas para o alto preço, uma vez que o custo de produção é reduzido. “Compramos uma TV feita na China, porque o preço é menor. Mas no caso do traje, acessório ou artigo de luxo, que além do produto em si vende prestígio de origem, não há justificativa para a manutenção de seu preço”, diz Koromyslov. Na percepção do consumidor, comprar um traje Armani produzido no leste europeu é como comprar um tapete persa fabricado em Taiwan, ou um vinho francês produzido no Marrocos. A polêmica em torno da transferência das linhas de produção na França para o leste europeu, a África e a Ásia se dá porque os conceitos de luxo e de exclusividade vêm sendo cultivados no País desde o século 17. A transferência de plantas para países em desenvolvimento afeta não apenas o setor têxtil, um dos mais impactados da França. De acordo com Philippe Barbet, professor da Universidade Paris XIII (Sorbonne) e do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, a indústria nacional perdeu 13,6 mil empregos em 2005. “O impacto macroeconômico das transferências de indústrias é pequeno, mas em nível regional é muito importante.” Endereço das fábricas é tabu entre as marcas Em Paris, são poucas as empresas que admitem falar sobre a nova origem de suas linhas de produção. Procurado, o presidente da Federação Francesa de Alta Costura, Didier Grumbach, não quis se manifestar. Depois da insistência da reportagem, Charlotte Balmont, diretora do Comité Colbert, associação que reúne 68 grifes de luxo francesas, entre as quais Dior, Chanel, Hermès, Céline e Givenchy Paris, respondeu com um e-mail. Charlotte informa que as companhias que representa vendem a “arte de viver na França”, o que lhes empresta, acredita ela, uma identidade nacional: “As marcas do Comité Colbert vendem produtos franceses, já que oferecem um imaginário ligado à excelência de nosso savoir-faire, origem de seus renomes”. A Longchamp Paris foi a única a quebrar o silêncio. Sua direção admite ter transferido 25% da produção para Marrocos,Tunísia e China, países nos quais haveria know-how para a fabricação. “A parte feita fora nos permite manter um custo médio razoável para nossos produtos”, argumentou Jean Cassegrain, diretor da marca. Controversa, a estratégia divide as grifes mais conhecidas do mundo. Dentre as francesas, Hugo Boss produziria na Turquia, Céline teria conferido aos chineses a fabricação de suas bolsas. Na Itália, segundo o jornal La Repubblica, Gucci, Armani e Prada teriam optado pelo leste europeu. Em contrapartida, Cartier, Chanel, Hermès Paris e Louis Vuitton afirmam que manterão máquinas e operários em solo francês. Essas marcas integram o grupo que luta contra a pirataria, um efeito colateral da transferência da produção para a Ásia. Globalização leva à mudança Sai o conceito do “made in” e entra o do “made by” Dentre as sutis transformações causadas pela transferência das linhas de produção da Europa para a África e para a Ásia está a provável substituição de um conceito que marcou o capitalismo no século 20: o “made in”, que embutia o conceito de “fabricado em”, como qualificação de produção, pode ceder espaço para outra classificação, o “made by” , uma etiqueta que define a assinatura do criador, isso, pelo menos, entre as grifes de luxo. A alteração tem relação direta com a percepção do consumidor sobre a nova estratégia das empresas, ensina Maxime Koromyslov. A idéia é esquecer o conceito de local de fabricação e enfatizar a origem da criação dos produtos. O método já é assumido pela Longchamp Paris: “O que importa para o consumidor é o "feito por Longchamp", e não o "Made in France", já que nós garantimos a qualidade idêntica dos produtos”, entende Jean Cassegrain, diretor-geral da grife que leva “Paris” no nome. Gilles Lipovetisky, filósofo francês e autor de O Império do Efêmero, entre outras obras sobre a importância do luxo para a sociedade contemporânea, disse não concordar que a transferência seja digna das grandes grifes da riqueza mundial. “Marcas que não têm imagem de tradição podem se transferir para o mundo em desenvolvimento, porque não têm uma origem histórica”, diz o teórico. “Elas são muito diferentes das que vão permanecer. Lipovetisky vê uma contradição entre a estratégia de construir fábricas em países subdesenvolvidos para baixar custos de produção, mas, ao mesmo tempo, manter o preço final de seus artigos. “Acredito que a globalização terá limites, sob pena de ameaçar a sobrevivência das próprias marcas.” FRASE Gilles Lipovetisky Filósofo francês “Acredito que a globalização terá limites, sob pena de ameaçar a sobrevivência das marcas” Lei italiana identifica origem dos produtos Desde outubro de 2005, consumidores que adquirem artigos de luxo na Itália têm uma salvaguarda, caso reprovem a fabricação dos produtos longe das mecas da moda. Um lei obriga todos os produtos feitos fora da União Européia a identificar com etiquetas que informem a sua real procedência. Em tese, desde então, todo traje Valentino vendido na Itália, mas produzido na fábrica da empresa no Egito, deve trazer a etiqueta “Made in Egito”. A regra, porém, não vale em outros países. Na França, nos Estados Unidos ou no Brasil, a verificação de origem é apenas uma formalidade aduaneira, para fins fiscais. No momento da venda, o comerciante pode retirar eventuais etiquetas com dizeres “Made in China”, já que essa informação poderia depreciar o artigo. Na Europa, apenas marcas que trazem no nome sua procedência têm de indicar o País de fabricação. A Longchamp o faz: “O País de origem é marcado em nossos produtos, com toda a transparência. O consumidor deve se beneficiar de todas as informações”, diz Jean Cassegrain, diretor da empresa. Para o autor do estudo que levantou a polêmica sobre a transferência das linhas de produção para longe da Europa, Maxime Koromyslov, quebrar o segredo sobre o local onde os artigos são fabricados é questão de honestidade com o consumidor.


Compartilhe:

<< Voltar

Nós usamos cookies em nosso site para oferecer a melhor experiência possível. Ao continuar a navegar no site, você concorda com esse uso. Para mais informações sobre como usamos cookies, veja nossa Política de Cookies.

Continuar