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Preço do produto chinês sobe 4,5 vezes e chega barato ao Ocidente

Veículo: Estado de são Paulo
Seção: Economia
Página: B4

Bugigangas saem da China por 22 centavos de libra e chegam às prateleiras da Inglaterra por 99 centavos Às 6h30, um grupo abatido faz o check-out no hotel em Guangzou, a lembrança do champanhe da Cathay Pacific ofuscada pelo cheiro da cerveja Tsingtao da noite anterior, consumida com companheiros chineses num bar enfumaçado. Tudo é rápido na atividade de compras na China: a programação, as decisões, o pagamento e a entrega. Há pouco tempo para pensar duas vezes. Não há tempo para enganos. Naquela primeira manhã, no entanto, depois do longo vôo até o delta do Rio Pérola, com escala em Hong Kong, o homem na fila do check-out não se sente dinâmico. O viajante, que chamaremos de Daniel, diz ter mais de 40 anos e se considera veterano do circuito das compras na China, depois de mais de 40 visitas. Para ele, a atividade já não é tão romântica. Ele viu os campos de arroz transformarem-se em fábricas e os caminhos rústicos, em rodovias. Viu caminhões de carga invadirem portos de pesca outrora sossegados. E abriu caminho entre milhares de compradores em mercados e feiras comerciais construídos no lugar das fazendas coletivas de Mao Tsé-tung. Daniel se ofereceu para fazer algo inédito. Nos próximos dias, com a garantia do respeito de sua confidencialidade comercial, ele mostrará ao jornal The Sunday Times o misterioso processo ao longo do qual um pedaço de plástico barato deixa uma fábrica chinesa por 22 centavos de libra esterlina e acaba na prateleira de uma loja de descontos na Grã-Bretanha custando 99 centavos. “A compra de mercadorias com preço único é a mais difícil do mundo”, disse Daniel. Todos os custos têm de se encaixar neste número mágico: 99 centavos de libra na Grã-Bretanha e US$ 0,99 nos Estados Unidos. “Neste jogo, sempre que alguém ganha, outro perde.” Também se trata de um dos mercados de varejo que mais crescem no mundo. As redes Tesco e Asda aumentarão as preocupações de Daniel com a concorrência quando suas seções de produtos de preço único começarem a funcionar a todo vapor. Existem lojas de 1 espalhadas pela Europa e até mesmo lojas de 100 ienes no Japão, todas vendendo brinquedos, bugigangas, acessórios - tudo o que se encaixe na fórmula do preço. “Os grupos de baixa renda as vêem como uma necessidade. Os de alta renda, como diversão”, disse Daniel. “São apenas objetos. Coisas que você nem sabe que deseja. Muitas vezes, quando você leva essas coisas para casa, percebe que não deveria tê-las comprado. É por isso que, no setor de baixo custo do mercado, elas criam uma sensação de aventura. Nos EUA, isso é chamado de caça ao tesouro. E acredite, estamos no setor de baixo custo.” Todo mundo adora uma pechincha, à exceção dos homens que precisam encontrá-la dentro daquela impiedosa equação: 22 centavos para 99 centavos. É por isso que o cultivo dos laços com os fornecedores chineses, que sobrevivem com uma das margens de lucro mais estreitas do mundo, é obrigatório na primeira noite na cidade. Outro item obrigatório é o chinês que fala ao celular enquanto embarca, ao lado de Daniel, num vôo de duas horas da China Eastern com destino a Ningbo, na costa leste. Lai - o nome é fictício - é um descendente dos intermediários que fizeram fortuna trabalhando para uma geração anterior de Daniels, quando os comerciantes britânicos desembarcaram em Cantão no século 19. Ele é mediador, intérprete, agente de viagens, negociador, companheiro de bebida e conselheiro. Nenhum estrangeiro, nem mesmo falando chinês fluente (e Daniel não fala), pode ter sucesso sem um Lai. Ele pode ajudá-lo a ganhar uma fortuna ou perdê-la. Lai pode estar disposto a qualquer alternativa. Daniel aceita o risco. Quando o avião lotado decola, Lai ainda xinga um fornecedor ao telefone, em voz alta, no dialeto da província de Zhejiang. Seus vizinhos na fileira 36 pigarreiam ruidosamente. O esfarrapado assento de Daniel não reclina. Ele cochila. Ningbo, capital comercial de Zhejiang, é uma cidade de 2 mil anos que ficou completamente esquecida na corrida rumo ao futuro. Seus hotéis encardidos são mais caros que os de Pequim, seus taxistas são trapaceiros, seus restaurantes, um roubo, e suas garotas de programa, mercenárias. A cidade também é um lugar de riqueza explosiva - o crescimento econômico pode passar de 15% ao ano. PELA INTERNET “Os fornecedores vêm nos pegar no hotel”, disse Daniel. “Os chineses são muito hospitaleiros - contanto que você gaste dinheiro.” A velha geração de compradores trabalhava em todos os estágios, folheando páginas amarelas, visitando fábricas e preenchendo encomendas em formulários de três vias. Daniel é jovem o bastante para aproveitar a era da internet. Ele e Lai já fizeram o trabalho de campo em Alibaba.com e MadeInChina.com, que listam milhares de fábricas e agentes. Eles farão as encomendas por e-mail e pagarão com transferência eletrônica. Mas não ainda. “É preciso ver o produto e o fabricante”, explicou Daniel. É uma missão de dois dias, extremamente diversificada. Uma das fábricas é um estabelecimento exemplar, orgulhoso por receber as visitas num show room impecável, com cafeteria. “Acho que serve para os rapazes da Marks & Spencer”, diz Daniel, seguindo em frente. Outra fábrica é uma bagunça dickensiana com alguns brinquedos de amostra espalhados numa mesa de plástico encardida no escritório do gerente. Mas Daniel pega sua calculadora e sua bíblia de planilhas de custo, faz as contas e fica satisfeito. Os proprietários ficam tão felizes que insistem num “banquete” imediato num restaurante nas proximidades, onde bebidas fortes regam uma seleção de iguarias escorregadias, irreconhecíveis mesmo para chineses experientes. Lai, o braço direito de Daniel, às vezes conclui que nenhum estrangeiro entende o chinês básico. Depois de alguns drinques, ele se envolve numa discussão sobre números e porcentagens que não soam como os dados apresentados a Daniel. Informado sobre isso, seu chefe encolhe os ombros, entediado. As visitas a fábricas continuam. Naquela noite, uma multidão de xiaojie, gíria chinesa para jovens trabalhadoras, ataca os compradores que relaxam nos bares e casas de massagem nas imediações dos hotéis. “O sexo barato na China é igual a qualquer produto barato na China”, suspirou Daniel, bebericando um copo de meio litro de Guinness, que custou 5 libras. “Você recebe aquilo pelo que pagou.” Ele se recolhe cedo, mas não antes de descrever a noite em que um fornecedor feliz enviou garotas aos quartos de sua equipe para comemorar um acordo com uma aula gratuita sobre os refinamentos da civilização oriental. “Nenhum dos rapazes recusou”, disse Daniel, maliciosamente. Na verdade, a matemática é mais fascinante que a corrupção da cultura comercial chinesa. E Daniel, de qualquer modo, não se sente superior. Ele conhece um colega de uma grande rede de varejo britânica que se aposentou mais cedo depois de juntar cinco propinas de fornecedores chineses numa conta na Suíça. “Estas são as pérolas”, disse Daniel numa tarde tranqüila, folheando suas planilhas de custos. E é assim que funciona: Tome-se um típico brinquedo de plástico pequeno. Ele sai da fábrica chinesa e entra num contêiner no porto por um preço “livre a bordo” (FOB) de 22 centavos de libra. Daniel pagará o transporte, a tarifa alfandegária britânica, o seguro e a descarga num depósito. As despesas de Daniel elevam o preço de “descarga” na Grã-Bretanha para 31,5 centavos. “Nosso objetivo é vender o produto para o varejista por 45 centavos”, explicou ele. O varejista vende por 99 centavos, mas fica com apenas 81,7 centavos - o resto é o imposto sobre o valor agregado, de 17,5%. “Portanto, trabalhamos numa base em que o preço em nosso depósito é um terço do preço no varejo”, disse Daniel. “Mas quem pega carona aqui é o Tesouro britânico. Assim, quem está roubando quem?” Ao longo da cadeia, as fábricas chinesas, Daniel, as transportadoras e os varejistas brigam pelas margens. A cada dia, a cada remessa, a cada semana. Os números são ainda mais implacáveis quando se pensa no extremo chinês da cadeia. Seus 22 centavos são o ponto de partida de Daniel. Ele calcula que, graças aos altos preços das mercadorias, a matéria-prima consome 15,5 centavos. Isto deixa a fábrica com 6,5 centavos para cobrir salários, despesas gerais e lucros. “Pense nisso”, afirmou Daniel. “Significa que os custos da mão-de-obra na China poderiam dobrar e mal perceberíamos. A pressão está no meio.” Os balanços sociais, documentos de respeito a regras e padrões trabalhistas exigidos pelas grandes marcas não são para a arraia-miúda de Daniel. “Elas têm de fazer isso”, disse Daniel, “porque ninguém quer acabar na primeira página do News of the World”. “Para nós, tudo se resume ao preço.” É em busca da difícil margem que Daniel e Lai contratam um táxi por 65 libras para percorrer o interior por três horas. No caminho, Daniel fala do Santo Graal dos compradores. “Adesivos holográficos para celulares - 8 centavos FOB por pacote em Ningbo e 1 libra nas lojas”, disse ele, sonhador. “Esse é dos bons.” Eles vão até Yiwu, que há 25 anos abrigava arrozais e hoje é, segundo diz modestamente a literatura oficial, “o maior mercado atacadista do mundo”, com 100 mil empresas espalhadas por 2,6 milhões de metros quadrados. “Se você gastar três minutos em cada estande, ficará um ano inteiro aqui”, vangloria-se o anúncio da feira, referindo-se às novas instalações. CONFIANÇA Daniel e Lai são ágeis. Na multidão cosmopolita, os britânicos se perdem entre compradores do México, Sri Lanka, Nigéria, Rússia e Oriente Médio, todos com seus companheiros chineses, lutando para baixar o preço pedido. “Se uma cotação inicial fica 15% ou 20% acima do esperado, perco o interesse”, disse Daniel. “Eles precisam saber que não somos da Harrods ou da Debenhams. Eu digo: ‘Certo, mostrem-me alguns preços de verdade. Chegar até aqui me custou 5 mil libras. Não estou aqui para ser bonzinho’. Na maior parte do tempo, eles simplesmente riem. Não dão a mínima.” Assim que encontra o produto, consegue o preço, identifica a fábrica e faz o negócio, Daniel começa a assumir o risco. “É impossível fazer valer qualquer aspecto legal na China”, disse ele. “E, a bem da verdade, eles não têm a mínima idéia de como processar um britânico desonesto em nossos tribunais.” É necessário um extraordinário grau de confiança de ambas as partes. Normalmente, a fábrica começa a produção ao receber a encomenda de Daniel. Ele tenta não pagar um depósito, embora algumas firmas chinesas insistam num adiantamento de 30%. “Esperamos carregar os produtos cerca de 30 dias depois da encomenda”, disse ele. Quando o contêiner com os produtos já está no Porto de Ningbo, a fábrica envia por fax a Daniel, em Londres, uma cópia do conhecimento de embarque. Então ele precisa transferir o pagamento total para a conta da fábrica na China por meio do HSBC em Hong Kong. “Você tem de acreditar que a fábrica, ao receber os fundos, vai liberar o conhecimento de embarque original e permitir que recebamos os produtos”, afirmou Daniel. “Se ela não fizer isso, você está f... E o cliente, é claro, já pagou adiantado pelos produtos que nem chegou a ver.” Os desastres que os compradores podem enfrentar são numerosos: um carregamento de coadores amarelos no lugar dos azuis encomendados; o contêiner de purificadores de ar com gel do qual vazou uma pasta roxa na chegada à Grã-Bretanha; o brinquedo misturado com a lama tóxica do lastro. Os produtos podem faltar, quebrar ou chegar com defeito. E há o esquema da empresa chinesa fraudulenta. “É um golpe de confiança”, explicou Daniel. “O comprador visita alguém. Os preços são extraordinariamente baixos. Ele desconfia e, por isso, faz apenas uma pequena encomenda de demonstração. É perfeito. Então ele faz outra e mais outra. O processo pode continuar assim por seis ou oito meses. Os clientes se multiplicam. Um dia, o comerciante na China pega o dinheiro, envia contêineres cheios de pedras e resíduos para o mundo todo e desaparece.” Os compradores, é claro, poderiam pagar inspeções profissionais ou trabalhar por meio de agentes, mas isso diminui as preciosas margens. Tanto chineses quanto britânicos assumem as perdas ocasionais e seguem em frente. Há uma base aérea militar adaptada em Yiwu, mas as conexões de vôos civis não funcionam e Daniel quer passar o fim de semana em casa. Assim, ele embarca arrastando as malas num trem lotado com destino a Xangai, esforçando-se para alcançar o último vôo da China Eastern para Hong Kong e a conexão da Cathay Pacific para Heathrow. Desde sua chegada, foram cinco dias de trabalho, quatro cidades e inúmeras reuniões rápidas. Dentro de um mês, 280 mil libras serão transferidas para a China via HSBC; entre 60 e 90 dias depois disso, os navios surgirão no horizonte da Inglaterra e as bugigangas de Daniel estarão numa prateleira perto de você. Tudo por 99 centavos.


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